Diante da proximidade do julgamento de Jair Bolsonaro por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tem sido mais frequente o apelo por “autocontenção” dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).
São críticos que pedem moderação, em nome do fortalecimento do Estado de Direito no país, para deslegitimar eventual condenação do ex-presidente. Essa argumentação, contudo, é desleal. A autocontenção é um ideal para casos de separação entre Poderes. Deslocar esse debate para o âmbito penal é pedir para que a legalidade seja ignorada, para favorecer um agente político poderoso. Nada mais distante dos valores do Estado de Direito.
Mais recentemente, esse tipo de argumento foi exposto pelo professor Marcus André Melo nesta Folha, ao reclamar de juízes ambiciosos. Segundo ele, “há um clamor pela autocontenção” dos ministros do Supremo, sem qualquer explicação sobre exatamente quem está clamando e nem por quê.
No texto, se sugere que a existência de foro privilegiado no STF é um dos fatores para termos um “tribunal e juízes hipertrofiados”. Nas entrelinhas, há uma acusação de excesso no uso das atribuições penais pelos ministros do Supremo no atual contexto.
Esse mesmo tipo de acusação foi verbalizada em evento público pelo ministro André Mendonça. Em sua fala, enfatizou que “o Estado de Direito impõe a autocontenção” e que “o bom juiz tem que ser reconhecido pelo respeito, não pelo medo”. Ao final, indicou que esse bom juiz deve produzir decisões que “gerem paz social e não caos, incerteza e insegurança”.
Em um primeiro momento, tais colocações parecem corriqueiras e até triviais. Uma boa parte da comunidade jurídica defende a promoção da autocontenção no STF. Se trata de um valor importante, dentre muitos outros, no conflito entre Executivo, Legislativo e Judiciário, para evitar a interferência indevida em políticas públicas e na atividade legislativas.
É um valor para que se evite a criação de soluções judiciais heterodoxas com frequência. Quem pede autocontenção, pede que magistrados reflitam – de forma política e consequencialista – como, quando e com qual intensidade deve exercer seus poderes.
Porém, pedir pela autocontenção judicial no âmbito de processos criminais é nefasto. Queremos mesmo que magistrados condenem ou absolvam a depender da sua suposição sobre o que trará paz ou caos social? No processo criminal deve haver condenação se existir fundamento legal para tanto (provas da autoria e dos atos criminosos).
Clamar pela autocontenção no âmbito penal é pedir para que não se aplique a lei; isso sim uma afronta ao Estado Democrático de Direito. No âmbito penal, a legalidade é um dos principais valores, entre outros, que devem orientar a ação judicial.
Ironicamente, quem afirma isso é justamente o autor mobilizado pelo professor Marcus Melo, no mesmo texto citado em sua coluna. Em “The Politics of The Rule of Law”, Joseph Raz defende que a observância do Estado de Direito depende crucialmente “da existência de um Judiciário forte e independente”.
Para isso, “é necessária uma cultura de legalidade, de respeito à lei, e uma disposição para agir conforme a lei mesmo quando você tem prejuízos sob ela”. A autocontenção no campo penal é justamente a ambição desmedida que Marcus Melo tanto critica.
Essa é uma posição perfeitamente alinhada à replica que o ministro Alexandre de Moraes ofereceu ao ministro Mendonça no mesmo evento. “O respeito [ao Judiciário] se dá pela independência. Um Judiciário vassalo, covarde, que quer fazer acordos para que o país momentaneamente deixe de estar conturbado, não é um Judiciário e independente”.
Essa independência é crucial no exercício da função para a investigação e eventual condenação de agentes poderosos. Afinal, por vezes, aplicar a lei não traz paz social, mas sim a revolta dos correligionários. Esse é um desafio para o Estado de Direito e liberal, especialmente quando agentes políticos usam de seus poderes para corroer as instituições para anular, justamente, o Estado Democrático de Direito; um desafio que não se resolve com autocontenção.