A turnê de Maria Bethânia, 60 anos de carreira, começa neste fim de semana com shows no Rio de Janeiro (nos dias 6, 7, 13 e 14 de setembro na casa Vivo Rio), seguindo para São Paulo (em 4, 5, 11 e 12 de outubro) e Salvador (em 15 de novembro). Ao longo de seis décadas, a cantora baiana se consagrou como uma das maiores vozes e artistas brasileiras, imprimiu uma presença ímpar no palco e levou a teatralidade ao centro da canção popular.
No livro Budapeste (2003), Chico Buarque escreveu: “O ator se traveste de mil personagens, para poder ser mil vezes ele mesmo”. Bethânia, que antes de mais nada queria ser atriz, sabe bem disso. A estilista Gilda Midani, uma de suas colaboradoras mais longevas, recorda o quão precisa ela sempre foi. Para a tour Carta de amor (2012), a primeira colaboração entre as duas, Bethânia desejava uma camiseta azul, de um tom específico, com um detalhe dourado. “Quem me procurou foi a Kati de Almeida Braga (da gravadora Biscoito Fino), que trabalhava com ela. Era véspera da estreia e eu estava prestes a viajar. Disse que faria com toda a honra, mas não daria para provar: se der certo, deu”, conta Gilda. E deu.
Entre figurinos de seus maiores parceiros e colaboradores, Flávio Império e Gilda Midani, Bethânia vestiu modelos de Dener, Clodovil, Ney Galvão, Maria Celeste Duarte, João Santaella Junior, Paulo Rogério de Oliveira, Alessandro Michele (para a Gucci), Dries Van Noten e Miuccia Prada. O que permanece inalterável, como confirmam os entrevistados para esta reportagem, é que ela só veste o que quer.
Maria Bethânia com look da turnê 60 anos.
Foto: Guilherme Nabhan
Maria Bethânia com look da turnê 60 anos.
Foto: Guilherme Nabhan
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De acordo com Thereza Eugênia, que fotografa a cantora desde o show Comigo me desavim (1967), “Bethânia é uma pessoa muito elegante, e a roupa condiz perfeitamente com o que ela é. O fato é que ela nunca pertenceu a ninguém no sentido de ‘ser vestida’ por alguém. Só usou o que lhe interessava. Ela não fazia nada porque o outro estava gostando. Isso é sua marca”.
Tais escolhas encontram ecos nos direcionamentos de sua própria carreira. Além de não se filiar à bossa nova nem à tropicália, como fizeram seus parceiros baianos, a artista sempre esteve no comando dos roteiros de suas apresentações. Enquanto alguns de seus colegas enveredaram por uma série de experimentações em parceria com diferentes diretores, estilistas e músicos, Bethânia manteve os pés firmes na tradição dramática.
Os figurinos de Maria Bethânia ao longo do tempo
Maria Bethânia no show Comigo me desavim, em 1967.
Foto: Thereza Eugênia
Maria Bethânia em recital na boite Blow Up, em 1969.
Foto: Thereza Eugênia
Maria Bethânia no show Brasileiro – profissão esperança, em 1970.
Foto: Thereza Eugênia
Em seu primeiro show, Nós, por exemplo (1964), em Salvador, ela entrou nos palcos descalça: “Na hora de entrar, tirei o sapato, não sei por quê. Mas dali em diante nunca mais cantei de sapato. Talvez eu precisasse tirar o rigor cênico”, disse em entrevista ao Instituto Gilberto Gil. O gesto anunciava as ondas indomáveis que marcariam toda sua trajetória.
Com o primeiro cachê, comprou um vestido de chita para a mãe, Dona Canô. Com o primeiro sucesso no Rio de Janeiro, abriu as portas do país para seu irmão de sangue, Caetano Veloso, e para os de alma, Gal Costa e Gilberto Gil. Em tempos de descrença no Brasil, quem nunca se sentiu redimido pela arte de Bethânia? Além de vestir uma nação inteira, a cantora também nos ensinou a nos desnudar, enquanto sua voz decide se será o carro-chefe de uma paixão ardente ou o drama de uma fossa profunda.
“O primeiro figurino da Bethânia que me marcou foi no show Drama – Luz da noite, em 1973, no Teatro da Praia (RJ).” Tratava-se de uma criação de Zênia Marques. “Lembro bem que ela estava com a barriga de fora. Achei lindíssimo”, relembra Thereza. Ainda sobre o início da carreira, a fotógrafa destaca as criações de Flávio Império, que exploravam a sensualidade da cantora com saias bordadas, sedas e muitas transparências. Esses momentos são decisivos para compreender a relação de Bethânia com a moda.
Maria Bethânia no show Drama – luz da noite, no Teatro da Praia (RJ), em 1973.
Foto: Thereza Eugênia
Maria Bethânia no show Drama – luz da noite, no Teatro da Praia (RJ), em 1973.
Foto: Thereza Eugênia
Maria Bethânia no show Drama – luz da noite, no Teatro da Praia (RJ), em 1973.
Foto: Thereza Eugênia
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Sua estreia profissional ocorreu em 1965, quando entrou no elenco do espetáculo musical Opinião (1964), dirigido por Augusto Boal – referência do teatro político brasileiro, reconhecido internacionalmente – para substituir Nara Leão. Embora já se apresentasse na Bahia, a artista considera esse o marco inicial de sua carreira profissional. Sua participação foi marcada por roupas simples e cotidianas, em sintonia com o tom da peça. Assim como nas colaborações seguintes entre Bethânia e o dramaturgo – Arena canta Bahia (1966) e Tempo de Guerra (1966) – o foco residia mais na força política dos discursos do que nas visualidades da cena.
No entanto, foi a partir desses flertes com o gênero teatral que Maria Bethânia conheceu Flávio Império. Ele se tornaria um dos principais figurinistas e cenógrafos de sua carreira, atuando como parceiro criativo de dois diretores que figuram no mais alto panteão bethânico: Bibi Ferreira e Fauzi Arap. Império, que faleceu prematuramente em 1985, aos 49 anos, em decorrência de complicações da Aids, foi responsável pelos figurinos de shows emblemáticos, entre eles Rosa dos ventos (1971), A cena muda (1974), Doces Bárbaros (1976) e Pássaro da manhã (1977).
Para Rosa dos ventos (1971), ele estruturou o espetáculo em cinco blocos inspirados na mandala junguiana: Terra, Água, Eu-difícil, Fogo e Ar, criando figurinos específicos para cada segmento. Nos blocos do Eu-difícil e da Água, associados à infância, recriou o vestido de primeira comunhão de Bethânia, amarelando e desgastando o tecido. Para o do Ar, elaborou um traje negro que fundia a intérprete ao cenário, como uma presença etérea – foi a última vez que Bethânia usou preto em cena, seguindo orientações religiosas.
Maria Bethânia e Gal Costa em Doces bárbaros, em 1976.
Foto: Thereza Eugênia
Maria Bethânia no show Mel, em 1980.
Foto: Thereza Eugênia
Maria Bethânia no show Estranha forma de vida, em 1981.
Foto: Thereza Eugênia
O jornalista Renato Contente, pesquisador e especialista em MPB, explica que a cantora foi iniciada na fé do candomblé pelas mãos de Mãe Menininha do Gantois, no início da década de 1970. “A artista ainda agregaria ao visual contas e outros adornos simbólicos e protetores, destacando a centralidade da religião na sua vida e na sua arte. Braceletes, colares e anéis sobrepostos, em geral de ouro ou prata, passaram a compor seus visuais, característica que permanece até os dias atuais”, diz.
Durante os anos 1970 e ainda sob influência de Flávio, Renato observa que, em espetáculos como Doces Bárbaros (1976) e Pássaro da manhã (1977), “os visuais de Bethânia eram compostos majoritariamente de saias, tops e corpetes de inspiração hippie, que valorizavam sua corporalidade, gestos e visceralidade”. O pesquisador aponta um estilo mais despojado em A cena muda (1974), com camisetas justas e calças flare. Na mesma década, ele destaca o jogo semântico andrógino que marcava a visualidade da intérprete. Um exemplo é o terno branco, feito por Fernando Bedê e usado em turnê ao lado do irmão Caetano Veloso, que vestia traje idêntico, em 1978. Outro está no provocativo encarte do disco Pássaro da manhã (1977), em que uma gravata perolada sobressai sobre um terno branco.
“Nos anos 1980, já convertida na grande dama da canção romântica brasileira, após o sucesso acionado pelo sensual e disfarçadamente político Álibi (1978), vestidos e adereços de ar mais sofisticado tomariam a cena”, comenta Renato. “Vestidos-corpetes ganharam destaque crescente nesse período, como na peça ornamentada com lantejoulas prateadas utilizada no show Mel (1980), ou, já nos anos 1990, no show oriundo do álbum As canções que você fez pra mim (1993), em 1994, em delicado vestido perolado com padrões que remetiam à rendaria.”
A parceria entre Maria Bethânia e Gilda Midani
Maria Bethânia no show Abraças e agradecer, em 2015.
Foto: Thereza Eugênia
Maria Bethânia no show Grandes sucessos, em 2016.
Foto: Gilda Midani
“Outro dia, fiz uma brincadeira sobre roupas para fotos desta turnê, e ela me disse: ‘Não esqueça que eu sou uma cantora popular’”, relata Gilda. “Eu respondi: ‘Olha, mas colocar você de chinelinho e vestido de chita não vai dar. Você vai me desculpar’. A solenidade que ela traz e a maneira como se comunica não a distancia do público. Ao contrário, o eleva e convida a um lugar de importância e de autoestima profunda. É uma grande mágica. Por isso, não tenho cerimônia em explorar diferentes linguagens.”
Para se explicar, a estilista e figurinista menciona a imagem vermelha que acompanha o material de divulgação da turnê 60 anos de carreira: “É a liturgia do teatro. Vestir Bethânia de cortina, de diva, pela sua devoção ao palco. Não dá para simplesmente enfeitar Bethânia, como acontece com muitas artistas. É preciso vestir uma persona.”
Dentre os trabalhos realizados por Gilda, destacam-se Abraçar e agradecer (2015), turnê comemorativa dos 50 anos de carreira e momento em que as roupas homenageiam Iansã e Oxum. “Ela define o ambiente, a paisagem, o desejo. E nós combinamos, temos códigos semelhantes, uma organicidade comum, referências que se encontram”, fala a designer. Para estes figurinos, Gilda pensou em algo não tão estruturado, porém gráfico, que cobriria peito, diafragma e barriga. “Mas fui ver um ensaio, e ela estava só de casaquinho e camiseta. O que acontecia ali, naquela região do torso, se eu tampasse, seria uma assassina. Todo o movimento e a expressão estavam lá. É a topografia da interpretação.”
Maria Bethânia no show Claros breus, em 2019.
Foto: Thereza Eugênia
Maria Bethânia com look em homenagem à escola de samba Mangueira.
Foto: Gilda Midani
Maria Bethânia no show Caetano & Bethânia, em 2024.
Foto: Roncca
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Logo na sequência, a Mangueira foi campeã do Carnaval carioca de 2016 com o samba-enredo Maria Bethânia: a menina dos olhos de Oyá. A estilista explicou que, por coincidir com a celebração dos 50 anos de carreira, elas decidiram transformar o figurino do show em verde e rosa. Não se tratava, porém, da mesma peça, já que não seria possível tingir as originais (em vermelho). Todo o traje foi refeito, com mais brilho e pequenas modificações, sem comprometer a ideia central.
Gilda afirma que cada situação tem uma história particular: “Se é ela e o Zeca Pagodinho, por exemplo, você já pensa: a dama e o vagabundo. Então a roupa precisa trazer esse lado flamboyant. Para o show Grandes sucessos (2016), disse: vamos fazer de você o globo da boate, aquela esfera prateada que reflete tudo. No Caetano & Bethânia (2024), era luxo, tinha uma coisa de procissão de Nossa Senhora, brocados dourados.” Para essa última turnê com o irmão, Gilda fez questão de ressaltar a beleza que o tempo imprime na matéria, essa “arte do desgaste”. Para atingir tal resultado, usou rendas de 1930 para bordar um dos casacos, adicionando uma camada extra de memória.
A apenas 19 dias da estreia de 60 anos de carreira, quando a entrevista para esta reportagem foi realizada, as roupas do figurino ainda não estavam prontas. No início do processo, Gilda, dona de um senso de humor peculiar, perguntou a Bethânia: “E agora a gente faz o quê? Bota uma roda-gigante na sua cabeça? Acho que agora precisamos transcender, talvez em direção a algo mais simples, mais etéreo”. Ao ser questionada se as fotos de divulgação já indicavam algum caminho, Gilda respondeu: “Talvez algo que sugira isso. Os ambientes que criamos ali trabalham sempre com o branco, o ouro e o vermelho. Essas são as cores que traduzem melhor o universo da Bethânia.”
Vestir a roupa, soltar os cabelos, colocar as pulseiras: são atos que definem sua presença, formas de inventar a si mesma e, ao mesmo tempo, reinventar a cena brasileira. O rigor das escolhas, a relação visceral entre corpo, voz e propósito, tudo isso compõe uma assinatura estética que se tornou inconfundível – Glauber Rocha a chamava de “Maria Callas do Sertão”. A pequenina onda solta de Santo Amaro que, invertida a correnteza, inundou até o que havia de mais seco neste país.
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