As aves migratórias portam ideias. Essa é a metáfora feita por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, curador geral da Bienal de São Paulo, para fazer a defesa contundente do esfacelamento das fronteiras, físicas e simbólicas, na criação de um novo projeto de humanismo, que leve à superação das guerras e das ideias racistas e chauvinistas.
Na entrevista a seguir, o pensador fala sobre a sua formação e a importância fundamental da poesia e da beleza para repensar a humanidade, além de apresentar as linhas gerais do projeto de curadoria da mostra, que será aberta neste sábado (06.09).
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Como propor um balanço sobre a produção artística contemporânea nesse contexto de crise climática, ambiental e geopolítica?
Estamos passando por um momento muito difícil. Você viu como o governo Trump desmontou o Departamento de Educação? Parece que há um plano para deixar as pessoas ignorantes — porque assim você pode controlá-las melhor. Você pode ser um ditador se as pessoas forem ignorantes. Por outro lado, estamos testemunhando uma crise política global. Não apenas no Congo, no Oriente Médio ou na Ucrânia, mas em todo o mundo. Também precisamos lidar com os desafios que acompanham a inteligência artificial.
Você tem um olhar otimista em relação às possibilidades transformadoras da arte? Você já disse que a beleza e as obras de arte são políticas, são uma práxis que pode mudar a maneira de estar no mundo.
A arte desempenha um papel fundamental porque nos dá a possibilidade de encontrar uma forma para a ideia. Nos dá a possibilidade de sonhar, mas também de prevenir, como diz Jacques Attali (escritor e economista francês). Creio que em uma época em que há tanto ódio, negatividade, violência, uma das coisas mais radicais a fazer é pensar, ativar a política da beleza. Os seres humanos são lindos, nosso planeta é lindo. Não posso me dar ao luxo de não ser otimista.
Você disse, em entrevista a Lisette Lagnado (jornalista e crítica de arte), que já ultrapassamos o tempo da frontalidade, que precisamos da poesia para falar de assuntos que são terríveis.
Sim, com certeza. Sinto que a frontalidade é uma postura muito colonial. É violento. Quando meu avô era vivo, se eu lhe fizesse uma pergunta, ele respondia com um provérbio. Ele sempre contornava a questão, em vez de abordá-la de frente. Isso nos ajuda a encontrar ângulos diferentes para ver as coisas.
Quando você está de frente, você só vê uma direção. A poesia nos permite fazer esse rodeio?
Isso, ela permite dar a volta. É por isso que escolhemos os voos das aves migratórias como portadores das nossas ideias. Tenho muita confiança na poesia. Como escreveu Bem Okri, um escritor nigeriano que vive em Londres, em seu livro Um tempo para novos sonhos, “precisamos de poesia agora, mais do que nunca. Precisamos da crueldade desajeitada da poesia, precisamos de sua insistência indireta na magia de ouvir em um mundo de armas em conflito. (…) Precisamos da voz que fala o que há de mais elevado em nós. Precisamos da voz que fala às nossas alegrias”.
Bienal de São Paulo: vistas da 36ª edição
Foto: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo
Quais foram seus primeiros contatos com a arte?
Cresci em uma cidade chamada Bamenda (em Camarões), onde não havia nenhuma galeria e museu, mas a arte era onipresente. A beleza estava em todo lugar. Se você caminhava pela rua principal, parecia um desfile da Semana de Moda. As pessoas usavam coisas preciosas, com tecidos deslumbrantes. Nessa avenida, a cada 5 ou 10 m, alguém colocava sua caixa de música tocando. Andar 1 km ali significava ouvir toda a música do mundo. Lembro-me disso como algo tão lindo. Infelizmente, essa cidade está em guerra há oito anos e não posso ir lá. Mas eram os anos 1980 e 90, quando não havia internet. Havia um sujeito cujo irmão mais velho morava nos Estados Unidos e lhe enviava jornais e revistas, como a Newsweek, que ele revendia. Tudo com um ano de atraso. Mas para nós era como pãozinho saído do forno. Estávamos famintos por informação, queríamos saber o que estava acontecendo no resto do mundo. E a mesma coisa com o rádio. Me lembro que meu pai acordava de manhã para ouvir nossas estações preferidas: primeiro a Africa Number One, que vinha do Gabão. Depois a Rádio França Internacional, a BBC… Assim, ele via o mundo. Também tínhamos a Rádio FM Akwa Ibom, que vinha da Nigéria e tocava de tudo. Isso explica o meu percurso até chegar à cultura. Nunca fiz cursos de história da arte, nunca frequentei uma escola para ser curador. O interesse pela arte, eu fui aprendendo sozinho.
Temos um paradoxo. Se na rua da sua infância se escutavam ao mesmo tempo todas as músicas do mundo, hoje a tecnologia nos permite acessar uma quantidade infinitamente maior de músicas, mas todos escutam o mesmo.
É isso! Eu estive em Camarões em janeiro e conversei com um jovem que me disse não ter tempo para ler. Perguntei a ele: “Então como você se informa?” E ele me respondeu: “Pelo TikTok”. Isso faz parte da nossa conversa. Sim, temos tudo à nossa disposição, todas as possibilidades de acesso à informação, mas não a desejamos. Há 35 anos, quando eu estava em Bamenda, não existia biblioteca, mas todo mundo queria ler alguma coisa. Comprávamos o jornal de um ano antes. É, como você diz, um paradoxo. Mas não devemos nos desesperar.
Performance de dança Gwoka, durante encontro preparatório para a 36a Bienal de São Paulo, em Les Abymes, Guadalupe.
Foto: Philippe Hurgon/Fundação Bienal de São Paulo
Sua formação inicial é em biomedicina. No início, você teve mais interesse pela ciência?
Não foi uma questão de interesse, mas de pragmatismo. Quando cheguei à Europa, tinha 20 anos, 300 marcos alemães – o equivalente a 150 euros – e minha mala. Sabia que tinha um amigo na Alemanha e poderia ficar com ele, mas éramos quatro em seu quarto, de 12 m². Fui para estudar e me tornar engenheiro. História da arte não era uma opção. Lembro de uma vez que liguei para minha mãe para dizer que queria trabalhar com arte. Ela ficou chocada e me perguntou como eu ia viver. Pensei: ela está certa. Então fiz biotecnologia, biotecnologia médica, biofísica e me tornei o que me tornei. Mas, durante todo esse tempo, estava fazendo arte, escrevendo e organizando exposições.
Foi aí que nasceu o SAVVY Contemporary, o laboratório de formas e ideias que você fundou?
Criamos o SAVVY em 2009, porque a maioria das instituições em Berlim não nos dava a oportunidade de fazer as coisas do jeito que queríamos. Você pode imaginar que naquela época havia muito pouco discurso pós-colonial. Eles não queriam entender que existiam filosofias e pensamentos vindos de outras partes do mundo. Uma das últimas coisas que me levaram a criar o SAVVY foi um artigo em um jornal de Berlim cuja manchete dizia: “Weltkunst ist Westkunst” (“A arte do mundo é a arte do Ocidente”). Não é preciso ser um gênio para saber que toda a produção artística do início do século 20 se inspira na arte vinda do resto do mundo, da África, da Ásia, da América… E começamos a fazer exposições e, o que é ainda mais importante, a lançar publicações. Fomos um pouco provocativos. Falamos sobre coisas que não víamos em museus na Alemanha.
Esse processo culminou com o convite para que você dirigisse a Haus der Kulturen der Welt (HKW), ou Casa das Culturas do Mundo, uma prestigiosa instituição berlinense. Conte um pouco sobre a mudança de grande significado simbólico que você promoveu ali, renomeando os espaços com o nome de mulheres, como as brasileiras Beatriz Nascimento, Nise da Silveira e Marielle Franco.
A história escrita por homens é muito unilateral e sempre foi violenta. Sabemos que muitas mulheres fizeram coisas importantes no mundo e isso não foi reconhecido. Foi um pequeno gesto, mas que considero importante. Fiz um apelo à minha equipe, pedindo que todos sugerissem nomes de mulheres do mundo todo e foi assim que eles surgiram. Para mim foi muito importante ter Marielle e Nise, mas Beatriz Nascimento foi fundamental porque eu queria que minha primeira exposição fosse sobre quilombismo e ela tinha escrito muito sobre quilombos. Para mim, uma instituição também é um arquivo. Um edifício vivo.
Você fala em “mundo africano”, que se expande para além do continente e se espalha pelo mundo, com grande presença inclusive no Brasil.
Meu ponto de vista é que o Brasil, assim como o Haiti e os países do Caribe, faz parte do mundo africano. É isso que me interessa porque, se eu vou ao Benim e à Nigéria e vejo uma demonstração de egungum e vou a Itaparica (BA) e vejo o egungum também, não me importa se é desse lado do Atlântico ou do outro lado. Para mim, é a manifestação da África, como um conceito. Quando alguém como Mateus Aleluia canta, isso fica totalmente claro. Disse a ele uma vez em Berlim que conheço muitos brasileiros que vão à África para encontrar seu passado, seus laços. É verdadeiro e é importante, mas muitos de nós africanos vêm ao Brasil para encontrar a nossa ancestralidade. Há muita coisa que foi esquecida na África e que está preservada aqui.
Teremos isso na Bienal?
Penso que as coisas não são unidirecionais. Elas não são assim lineares. Veremos isso na Bienal, mas não apenas isso e não de maneira superficial, mas em sua profundidade. Usamos o verso de um poema de Conceição Evaristo – “Nem todo viandante anda estradas” –, mas nos interessa o poema inteiro. Sobretudo o trecho que vem depois da frase que dá título a ele: “Há mundos submersos, que só o silêncio da poesia penetra”.
36ª Bienal de São Paulo: de 6 de setembro a 11 de janeiro de 2026, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera, na Avenida Pedro Álvares Cabral, s/n, Ibirapuera, São Paulo. De terça a sexta e aos domingos, das 10h às 18h, aos sábados, das 10h às 19h. A exposição estará aberta na sua primeira segunda-feira (8.09), das 10h às 18h. Entrada gratuita.
Esta reportagem foi publicada originalmente na edição impressa do volume 4 da ELLE Decoration Brasil.
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