Se, até aqui, uma das apostas de parte das defesas dos réus da trama golpista era argumentar –assim como se discutiu nos julgamentos do 8 de Janeiro– que o crime de golpe de Estado já teria incluído em si o cometimento do crime de abolição do Estado democrático de Direito ou vice-versa, o voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, não só frusta essa perspectiva como lança as defesas em terreno ainda mais pantanoso.
Nesta terça-feira (9), o magistrado não apenas sustentou que considera que houve o cometimento de ambos os crimes, como deixou em aberto se sua posição é a de que tais crimes teriam sido praticados mais de uma vez.
Moraes iniciou sua exposição trazendo uma apresentação de PowerPoint com 13 eventos que, em sua análise, seriam atos executórios. Com isso, ele já afasta um dos argumentos de parte das defesas, especialmente a do ex-presidente Jair Bolsonaro —de que as condutas comprovadas no autos seriam meros atos preparatórios, penalmente irrelevantes.
Apesar de reiterar incontáveis vezes que, desde meados de 2021, ocorreram vários atos executórios, o ministro não deixou claro, porém, o enquadramento jurídico de cada um desses eventos. Com isso, ainda é possível que ele considere, por exemplo, que um mesmo crime contra o Estado democrático de Direito foi cometido mais de uma vez ou que ele foi cometido em várias etapas.
Moraes disse, por exemplo, que “a sequência dos atos executórios planejados pela organização criminosa com a tentativa, com o emprego de grave ameaça, de restringir o exercício do Poder Judiciário no famoso 7 de Setembro de 2021”. Não fica evidente, porém, se tal episódio já seria, sob a perspectiva de Moraes, um crime por si só.
Especialistas consultados pela Folha apontam que essa definição –que pode repercutir no cálculo da pena total– só deve ficar clara no momento da votação quanto à dosimetria da pena, o que deve ocorrer após todos os cinco ministros da Primeira Turma se manifestarem e somente para os casos em que houver maioria favorável à condenação.
Por ora, tanto Moraes quanto Flávio Dino votaram para condenar todos os réus em julgamento por abolição do Estado democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, associação criminosa, dano qualificado contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
A única exceção é Alexandre Ramagem, que teve parte da ação suspensa pela Câmara dos Deputados, o que o livrou, temporariamente, apenas das duas últimas imputações.
“Essa foi uma questão que eu sempre tive, se ele [Moraes] iria considerar uma única tentativa de golpe com vários episódios, ou se ele iria considerar vários, o que permitiria inclusive aplicar 13 vezes a pena”, diz Davi Tangerino, professor de direito penal da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e advogado criminalista.
Apesar disso, Tangerino avalia que, mesmo que Moraes considere que os crimes se repetiram de modo separado, ele não somaria todas as penas possíveis, dado que isso geraria apenas repercussão negativa, sem nenhuma efetividade prática.
Segundo o advogado, a princípio, as únicas limitações que já poderiam ser traçadas seriam quanto à pena de organização criminosa, que não poderia se dar mais de uma vez, e ainda as relacionadas a dano ao patrimônio —por estarem atreladas apenas ao evento do 8 de Janeiro.
Também Diego Nunes, que é professor de história do direito penal da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e organizador do livro “Crimes Contra o Estado Democrático de Direito”, acredita que a posição de Moraes quanto ao enquadramento dos crimes deve ficar mais clara apenas com a dosimetria das penas.
O professor aponta que, no caso de o ministro de fato entender que um mesmo crime foi cometido mais de uma vez, ele também poderia aplicar o instituto do crime continuado, o que implicaria em um aumento de pena, mas evitando, uma “exasperação excessiva”.
Independentemente desta discussão, Nunes sustenta que, diferentemente dos processos exclusivamente relacionados ao 8 de Janeiro, no caso da trama golpista, faz mais sentido argumentar que não caberia absorção de um crime pelo outro, dado que há muito mais fatos relatados neste processo.
Nesta terça, portanto, Moraes não só rechaçou uma das principais controvérsias jurídicas levantadas nos julgamentos anteriores, como deu indicativo de que as penas de ao menos parte do núcleo crucial podem, em tese, ser ainda piores do que se vinha aventando até aqui.