Casa-museu-escola, o Acervo da Laje abriga mais de 50 mil obras que pretendem encantar quem visita. Localizado em São João do Cabrito, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, o espaço conta ainda com a geografia de uma das periferias mais bonitas do Brasil, de frente para a Baía de Todos os Santos, e com gestão do casal de professores Vilma Santos e José Eduardo Ferreira Santos, que nasceram e cresceram no bairro.
Há 15 anos produzindo e comprando obras de forma independente, o acervo abriga azulejos, esculturas, quadros, xilogravuras, porcelanas, fotografias, artefatos históricos do Subúrbio Ferroviário, cartazes de filmes, máscaras, discos e livros. São cerca de 50 mil obras (o Masp tem cerca de 10 mil) que estão em constante expansão. “É contínuo”, resume Zé, como é chamado o fundador do espaço.
No Acervo da Laje, os visitantes têm a oportunidade de conhecer não só arte, mas como como essas obras chegam. “As pessoas podem fotografar, tocar, experienciar as obras, não tem impedimento. É um desnudar do que é um acervo”, afirma José Eduardo.
A história do espaço começa em 2009, quando José Eduardo Ferreira Santos defendeu no doutorado em saúde pública pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) uma dissertação sobre as repercussões de genocídio de jovens na periferia. O sociólogo Geyke Espinheiro, que estava na banca, elogiou o trabalho, mas pediu para que Zé passasse a estudar a beleza do subúrbio.
No ano seguinte, cinco artistas da região faleceram e o casal começou a adquirir obras. Entre eles, estavam o escultor Otávio Bahia, o artista plástico Almiro Borges e a cantora Dona Coleta de Omolu. A casa onde moravam começa a receber visitas, oficinas e bate-papos. Quando a exposição de fotos “Cadê a bonita”, de 2012, chega ao local, o casal vai morar em outra casa para dar mais espaço às obras, que também vão sendo expostas nas lajes dos vizinhos, por meio de ocupações artísticas.
Em 2014, participam da Bienal de Artes da Bahia e chegam com as obras pela primeira vez em São Paulo. “Havia um arrebatamento de encanto. As pessoas chegavam cedo e não queriam ir embora, queriam ver a história do Subúrbio por meio de artefatos como conchas, tijolos e objetos de memória do bairro que já foi de palafita”, conta.
A Casa 2 foi construída em 2015. Enquanto Vilma continuava a dar aula de reforço para as crianças do bairro, José Eduardo seguia lecionando na universidade. O crescimento em dimensão foi orgânico. Até o começo da pandemia, uma parte dos recursos do museu eram das visitas que deixavam contribuições na caixinha.
Com o isolamento social do período, Zé e Vilma foram para a internet fazer lives diárias e também catalogar as obras. Com os dados da grandiosidade do acervo que possuíam começaram a participar de exposições em outros museus, como o Museu de Arte Moderna do Rio, Museu de Arte do Rio, Sesc Pompeia, Museu de Arte Moderna da Bahia, Sesc Belenzinho, Itaú Cultural e a exposição inaugural da Casa das Histórias de Salvador. Atualmente, há obras em Chicago, nos EUA, numa exposição que deve rodar por outras cidades norte-americanas.
“São artes que o Brasil ainda não viu, afinal todo mundo revisita alguns nomes das artes, mas as periferias não foram representadas nas artes nacionais. É uma curadoria a partir da periferia, sem interferências externas”, conta José Eduardo.
Crescimento
O acervo não para de crescer. Esculturas e máscaras de César Bahia, por exemplo, somam mais de 3 mil unidades e a cada semana o artista doa pelo menos mais 5 peças novas para o museu. Com as viagens mais constantes, vão chegando itens de periferias de outras cidades, como Fortaleza e Belém.
O museu foi ganhando divisões e transformou a Casa 1 em reserva técnica. Agora se prepara para um novo momento: terá um galpão em que vai abrigar quadros grandes, cursos, oficinas, além de um porão para reserva técnica e espaço para hospedar residências artísticas. O novo local já tem energia elétrica e quando chegar a água já vai começar a receber visitas, com obras ainda em curso como ocorreu com a Casa 2.
O projeto arquitetônico é do Coletivo Levante, que utiliza materiais sustentáveis, e a previsão é que em dois anos fique pronto. O momento é de transformação na região, que teve o histórico trem do Subúrbio desativado em 2021 e deve receber nos próximos anos o Veículo Leve sobre Trilho (VLT).
Nesse momento, o casal se dedica novamente à pesquisa das próprias obras, reacomodando nos espaços tudo que possuem. “As próximas exposições vão mostrar que a periferia ainda não foi indexada ao Brasil e também as narrativas de beleza da periferia (para além da denúncia)”, divide o fundador do espaço.
Zé que sempre escreveu, passou a se dedicar a outras artes nos últimos anos. Começou desenhando as iconografias da periferia de Salvador, registrando o cenário para as novas gerações. Isso se transformou em séries de desenhos que são impressos em azulejos queimados. O professor também começou a coletar madeira de demolição nas águas da Baía de Todos os Santos e transformá-la em velas, ex-votos, peixes, rostos, pitanga, galos…”É um mundo que só vai ver aqui, um colorido, uma luz. Um espaço para estimular quem achava que não sabia desenhar”, diz ele.
Futuro
Zé também relata que nesses 15 anos tem tido a oportunidade de ver as crianças crescerem, sem os déficits de arte que sua geração teve. Para o futuro, sonha com mais projetos de educação e de memória do Subúrbio, além de formar equipe. Já Vilma cuida do projeto “Acervinho” aos sábados, em que recebe cerca de 70 crianças para atividades artísticas e culturais. Nos últimos meses, as mães também pediram oficinas e têm ganhado espaço no museu.
O acervo conta com apoio do Instituto Flavia Abubakir que oferece merenda, além de custear contas básicas da casa como água e luz. O trabalho árduo tem rendido prêmios como o Brasil Criativo, em 2022, o Salvador Capital Afro, em 2023, além de homenagem da Noite da Aclamação em 2025, realizada pelo casal Leo Santana e Lore Improta.
Em seus 15 anos, o Acervo foi a oportunidade de muitas pessoas irem a um museu pela primeira vez. O casal criou uma rede de afeto e vínculo em que as pessoas ao visitarem ganham comida, concha, muda de planta… “Aqui também é a casa de gente (eles moram na parte de baixo da Casa 2), em que todos têm a possibilidade de conversar e sonhar. Nunca seremos só uma instituição porque não queremos perder essa beleza das conexões”, resume Zé.
Serviço: As visitas podem ser agendadas pelo Instagram e ocorrem de quinta a domingo das 9h às 16h. O Acervo da Laje fica na Rua Sá Oliveira, 2, São João do Cabrito, Salvador.