Especialistas classificaram como equivocada e sem sentido a declaração da porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, nesta terça-feira (9). Ela afirmou que o ex-presidente Donald Trump impôs tarifas e sanções ao Brasil com o objetivo de proteger a liberdade de expressão, e disse que os Estados Unidos não hesitarão em usar seu poder econômico e militar para defendê-la.
A fala aconteceu em meio ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Para Carlos Poggio, professor de relações internacionais da PUC-SP e especialista em política dos EUA, Levitt é impetuosa e, assim como o governo, não tem cuidado com as palavras. “[A ameaça] Não deve ser levada a sério. É a administração que as palavras são usadas sem o menor nível de cuidado”, diz.
Poggio diz que “Donald Trump faz ameaça dia sim e dia também e a grande parte das ameaças ele não cumpre”. Ele cita que a Rússia é constantemente alvo das ameaças do americano, que costuma prometer consequências ao país de Putin caso não cesse a guerra. “A Rússia continua bombardeando. É um governo que não tem credibilidade naquilo que concebe as palavras.”
Poggio ainda considera que a declaração foi feita de forma displicente e espontânea. “Não me parece que ela [Leavitt] entenda a diferença entre Brasil e Venezuela, por exemplo”, afirma ele, que conclui que, por isso, a declaração não deve ser levada a sério. “Mais uma declaração vazia vindo do governo Trump.”
Segundo o professor, a declaração não parece fazer parte de uma estratégia estruturada. O especialista acredita que o depoimento deveria ser ignorado pelo governo brasileiro.
“Se todo mundo for responder a cada maluquice que sai da Casa Branca, todo mundo entra na maluquice. Cabe aos demais governos entender que esse é um governo fora da curva que não respeita o básico da diplomacia”, diz.
O Itamaraty emitiu nota na noite desta terça-feira (9) afirmando que condena o uso de sanções econômicas ou “ameaça de uso da força contra a democracia”.
“O governo brasileiro condena o uso de sanções econômicas ou ameaças de uso da força contra a nossa democracia”, afirma a nota. O mesmo comunicado diz que os Poderes não vão se intimidar por ataques à soberania nacional.
Por outro lado, Camila Rocha, doutora em Ciência Política pela USP, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e colunista da Folha, pondera que é preciso cuidado, apesar de integrantes do governo Trump já terem minimizado a declaração.
“Nada é falado à toa. O Brasil é um país que tem uma série de recursos estratégicos, que podem sim vir a ser alvo de disputa. A luta pela liberdade de expressão a favor do Bolsonaro não deixa de ser uma espécie de retórica para, na verdade, alavancar interesses outros que os Estados Unidos possa ter em relação ao Brasil”, diz.
A pesquisadora cita que os Estados Unidos já “promoveram guerras, provocaram caos social em vários países e levaram a uma série de intervenções em prol de determinados interesses econômicos. Acho que é uma senha para que possa acontecer algum tipo de intervenção.”
Já o advogado Pierpaolo Cruz Bottini, professor da Faculdade de Direito da USP, classifica a declaração da Casa Branca como incompreensível. Para ele, a ameaça de uso de poder militar para pressionar o Poder Judiciário é inexplicável vindo de um país “que se diz democrático e que respeita a separação dos Poderes”.
“O Brasil não tem qualquer possibilidade jurídica de ceder a tais pressões”, afirma ele, que considera que resta ao país a saída diplomática para convencer a comunidade internacional do “absurdo das pretensões americanas”.
Na mesma linha, o advogado Gabriel Sampaio, diretor da ONG Conectas, considera que a declaração é mais uma grave tentativa de ameaça à independência do Poder Judiciário e da soberania do Brasil.
Para ele, ao mencionar o poder militar, a declaração torna “a colaboração de cidadãos brasileiros com a Casa Branca conduta ainda mais grave”. Sampaio diz que a fala também revela que, para além da tentativa de obstrução da justiça, “há continuidade delitiva de cunho golpista e com a colaboração de país estrangeiro para prática do crime de atentado à soberania.”
Segundo Paulo José Lara, co-diretor-executivo da ONG Artigo 19, organização internacional de direitos humanos, a declaração representa mais um passo nas ações autoritárias da administração Trump com objetivo de desestabilizar o multilateralismo e perturbar a ordem internacional.
“É particularmente preocupante pois mostra um ataque à nossa região, que vêm sendo assediada de maneira crescente”, diz ele, que considera que os Estados Unidos, historicamente, faz uso de pretextos para justificar ações militares e intervenção indevida de seu poder político e econômico.
“Ideias fundamentais como liberdade, democracia e liberdade de expressão aparecem, novamente, como um véu para cobrir o interesse político, econômico e ideológico desta administração”, afirma ele que rebate o argumento de que o Brasil estaria violando a liberdade de expressão. “A liberdade é um direito essencial e, em princípio, é o contrário do que promulga, defende e realiza a administração Trump.”
Para ele, embora a compreensão sobre o que é liberdade de expressão tenha que ser compreendida a partir de critérios jurídicos, sociais e culturais das realidades de países, há que se cumprir os princípios e fundamentos dos direitos humanos. “É descabido um país ameaçar intervir outro com a justificativa da violação da liberdade de expressão. Existem mecanismos do direito internacional para lidar com eventuais violações dos Estados e abusos cometidos.”
Ele ainda considera que é contraditório o governo Trump alegar a falta de liberdade de expressão no Brasil. “É irônico um governo que viola a liberdade acadêmica e o direito de manifestação, que assedia expressões artísticas e culturais e que despreza o debate qualificado entre iguais, usa a justificativa da liberdade de expressão para atacar uma outra nação”.