Por volta das 15 horas de 16 de outubro de 1998, um fax de Madri chegou à sede da Scotland Yard em Londres. O documento assinado pelo juiz Baltasar Garzón pedia a prisão e a extradição para a Espanha do chileno Augusto Pinochet Ugarte. O general reformado, que chefiara a bestial ditadura de 17 anos (de 1973 a 1990), estava internado numa clínica londrina e se preparava para voltar no dia seguinte a seu país, onde desfrutava de imunidade garantida por uma anistia geral decretada em 1978.
Ao saber da notícia, o escritor chileno Roberto Bolaño reagiu de pronto: “Um terremoto!”, explodiu. Não exagerou.
Pela primeira vez nos quatro cantos do mundo, recorria-se ao princípio da jurisdição universal que habilita a Justiça de outras nações a punir crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra e tortura praticados por chefes de Estado em um país, não obstante a existência de leis locais de anistia.
Baltasar Garzón fundamentava seu ato no episódio do desaparecimento, nos primeiros dias do golpe militar de 1973, de um cidadão espanhol funcionário das Nações Unidas.
As idas e vindas do caso Pinochet são contadas em “38, Londres Street”, de autoria do jurista e escritor inglês Philippe Sands, que as entrelaça com as peripécias de um ex-oficial nazista. Refugiado no Chile, ele se põe a servir à ditadura. Por meio das duas histórias, Sands reconstitui os horrores da repressão e a luta de juristas como Garzón por fazer prevalecer a ideia de que a vítima de crimes como os praticados por ditadores contra seus cidadãos não é uma pessoa em particular nascida nesse ou naquele país, mas o gênero humano inteiro.
O princípio da jurisdição universal é a pedra de toque do Tribunal Penal Internacional, estabelecido em 1998 e peça importante do regime internacional de direitos humanos. Este, por sua vez, é a porção mais frágil da chamada ordem internacional liberal, complexo sistema de regras que as democracias ocidentais criaram para lidar, no âmbito multilateral, com os problemas da paz e da guerra; das relações econômicas (financeiras e comerciais); das ameaças impossíveis de vencer no âmbito dos Estados nacionais (como a crise climática ou as pandemias). Vai sem dizer que tais instituições limitam mas não suprimem a política de poder das grandes potências, que volta e meia a transgridem.
Se, por um terremoto, a ordem internacional liberal ruir, o regime de direitos humanos será o primeiro a ser soterrado. É isso que está hoje em jogo quando Trump investe contra regras que, em dias melhores, os EUA ajudaram a criar e avalizaram, embora vez por outra as tenham atropelado.
Por isso não deixam de surpreender a indiferença com que parte da esquerda democrática brasileira encara a ação demolidora promovida pelo mandatário americano e a indisfarçável simpatia com que vê a ascensão da China à condição de potência mundial que poderá ocupar o lugar dos EUA. Pois, se isso se efetivar, a jurisdição universal para julgar ditadores e os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos irão para a lata de lixo da história.
Excelente notícia para o aspirante a Pinochet que os brasileiros conhecem de nome e vocação golpista.
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