Se você pretende visitar a Bienal de Arquitetura de Veneza, em cartaz na cidade italiana até 23 de novembro, vale apostar num look de alto-verão – mesmo se, do lado de fora, fizer frio. Ao entrar na megaexposição, o visitante é recepcionado por um bafo de ar quente produzido por velhos aparelhos de ar-condicionado que, pendentes do teto, parecem formar um jardim suspenso apocalíptico. A sala é escura, úmida, mas tem lá sua beleza. Ao percorrê-la por um caminho sinuoso que se abre em meio a enormes tanques d’água, vemos refletidos neles os equipamentos e, por vezes, a nossa própria imagem. A quem responsabilizar pelo aquecimento global? A resposta está no espelho líquido: a nós, humanos.
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O percurso do Arsenale – nome do principal pavilhão da Bienal – é de 310 metros, organizados numa linha reta. Antiga fábrica de cordames para navios, o prédio de 450 anos é uma estrutura horizontal comprida o bastante para permitir tecer, no passado, as robustas e longas cordas utilizadas para amarração.
Com um certo alívio, deixamos a sala quente da entrada e chegamos ao ambiente seguinte, com um enorme paredão. Nas laterais dessa estrutura, encontramos, de baixo para cima, a marca dos anos, desde 1650 até a época atual. Trata-se de um gráfico tridimensional sobre o crescimento da população humana ao longo do tempo.
Instalação The Other Side of the Hill, na Bienal de Arquitetura.
Foto: Divulgação.
Nomeada como The Other Side of the Hill, a instalação parece nos indagar: o que nos espera do outro lado do muro? Basta dar mais alguns passos para ver que caminhamos na direção de uma espécie de montanha esverdeada, feita de um material disforme e viscoso parecido com musgo. Algumas áreas desse organismo estranho são iluminadas pela luz fria de lâmpadas típicas das salas de cirurgia dos hospitais. Diagnóstico: o planeta está doente.
Detalhes de The Other Side of the Hill, com uma representação do planeta adoecido.
Foto: Divulgação.
Ao todo, 750 participantes – entre arquitetos, designers e cientistas – propõem soluções para o imenso desafio de adaptar nossas construções ao aquecimento global. O arquiteto e engenheiro Carlo Ratti, curador desta edição da bienal, batizou a mostra de Intelligens. Natural. Artificial. Collective justamente para destacar que as respostas devem vir dos recursos da natureza, da tecnologia e das múltiplas culturas que compõem a humanidade. Todas as formas de inteligência precisam ser mobilizadas e trabalhar em conjunto.
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Couro feito a partir de cogumelos, blocos de concreto produzidos a partir das conchas de ostras… Aqui e ali veem-se projetos voltados à substituição de materiais amplamente utilizados hoje e cuja exploração já se mostrou prejudicial ao equilíbrio do ecossistema (no caso dos exemplos citados, a pele dos animais na produção de couro e a areia das praias, ingrediente do cimento).
Instalação Necto.
Foto: Divulgação.
Necto, como é chamada uma obra composta por uma delicada e ondulada teia de fios de linho – tricotada por robôs, como nos informa a legenda –, pende do teto formando uma espécie de tenda. Em sua superfície, uma projeção de feixes de luz se movimenta sobre o tecido e dá à teia feita de material orgânico um ar futurista. Essa elegante estrutura, criada pelos arquitetos SO-IL e Mariana Popescu em parceria com os designers TheGreenEyl, não tem função meramente estética. Está ali como exemplo da tecnologia que Popescu vem desenvolvendo em busca de substituir os moldes que dão forma ao concreto durante sua secagem. A ideia é produzir, com esse material, uma alternativa sustentável às fôrmas de madeira, metal ou plástico usadas atualmente e descartadas após o uso.
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“O efeito desta instalação de alta tecnologia, porém rústica, insinua um futuro digital e natural ao mesmo tempo”, escreveu Rowan Moore, crítico de arquitetura do jornal inglês The Observer.
A interação entre tecnologia e artesania é um tema recorrente. Numa área da exposição onde a robótica prevalece, entalhadores profissionais do Butão esculpem, ao vivo, motivos típicos asiáticos numa tora de madeira, ao lado de uma vassourinha mecânica que se encarrega da limpeza dos resíduos. Perto dali, numa tenda formada por retalhos de madeira, um humanoide bate desajeitadamente numa espécie de tambor retrofuturístico enquanto um outro robô dança. Diferentes críticos chamaram a atenção para a aparência retrô dos robôs. “Isso cria uma sensação geral de déjà vu”, opinou Oliver Wainwright, do The Guardian.
Profissionais do Butão esculpem em tora de madeira.
Foto: Divulgação
O trajeto no Arsenal termina numa área onde estão reunidos projetos voltados para a vida fora da Terra. Um exemplo é Space Garden, uma estufa autônoma projetada para ficar na órbita do planeta e dar apoio a pesquisas agrícolas de ponta – uma espécie de “jardim comunitário” com base científica.
Instalação Co-Poiesis, na Bienal.
Foto: Divulgação
Saímos do Arsenal com a impressão de que a mensagem que fica não é muito esperançosa ou, pelo menos, nada atraente. O futuro parece artificial e, nele, a natureza se apresenta enclausurada, sob controle dos humanos e das máquinas.
Vista da instalação Space Garden.
Foto: Divulgação
Mas a Bienal não termina ali. Há inúmeras obras também do lado de fora do prédio e no Giardini – o jardim onde estão instalados os pavilhões nacionais, entre eles, o do Brasil. Canal Café é uma instalação que retira água do próprio canal de Veneza, filtra o líquido através de plantas que podemos ver dentro de uma estrutura de vidro e termina num bar equipado para servir café aos visitantes.
Quando ELLE esteve na cidade, o bar ainda não estava aberto porque a água ainda não havia chegado ao “ponto ideal” de limpeza, mas, segundo os organizadores, começaria a funcionar em breve. O projeto ganhou o Leão de Ouro 2025 de melhor participação.
Canal Café: instalação filtra água de canal em Veneza.
Foto: Divulgação
Dentre os pavilhões nacionais, o projeto vencedor foi o do Bahrein, país de clima desértico e extremamente quente. A instalação Heatwave demonstra métodos tradicionais de resfriamento utilizados no passado, antes da invenção do ar-condicionado, na região do Golfo Pérsico. O projeto combina diferentes soluções – todas independentes de tecnologias mecânicas – para compor uma praça de clima agradável, conquistado por meio do uso de uma torre de vento: uma estrutura vertical que se eleva acima do teto, capta o vento predominante e o canaliza, por gravidade ou pressão, para o interior da construção.
Instalação Heatwave, do Bahrein, é a vencedora da edição.
Foto: Andrea Avezzù / Divulgação
O Brasil, vencedor do Leão de Ouro de participação nacional na edição de 2023, apresentou desta vez uma cartografia de descobertas arqueológicas recentes na Amazônia, reveladoras de como populações indígenas moldaram a paisagem há mais de 10 mil anos.
Essas pesquisas comprovam que, ao contrário do que se acreditava, a floresta amazônica não é intocada, virgem – há nela paisagens que são resultado direto da ação humana. A exposição com curadoria dos arquitetos Luciana Saboia, Matheus Seco e Eder Alencar, do grupo Plano Coletivo, ocupa não só as paredes, mas também o chão da primeira sala do pavilhão, recentemente reformado para voltar à sua arquitetura original, da qual fazem parte grandes janelas de vidro.
Detalhes do pavilhão do Brasil.
Foto: Divulgação
Na segunda sala, que reúne pesquisas e práticas que reutilizam e reinterpretam espaços já construídos, a expografia tem como destaque uma imensa prancha que se equilibra no ar através de cabos de aço e pedras utilizadas como contrapeso. A estrutura lembra uma balança – metáfora visual do equilíbrio entre natural e artificial tão buscado pela arquitetura contemporânea.
Foto: Divulgação
Na opinião desta repórter, o pavilhão mais interessante é o da Polônia, que se concentra na arquitetura como mecanismo de segurança. Em meio a objetos criados para garantir proteção contra catástrofes dos mais diversos tipos – câmeras para detectar possíveis invasores, grades para impedir sua entrada, extintores de incêndio para apagar o fogo etc. – são exibidos recursos antigos e “mágicos”, como velas para proteger a casa dos trovões ou tigelas de leite para acalmar os espíritos que habitam a casa.
Pavilhão da Polônia.
Foto: Luca Capuano
“Práticas, costumes e convicções culturalmente enraizados, destinados a garantir a boa sorte e proteger contra a adversidade, são tratados como iguais e complementares aos equipamentos de segurança”, diz o texto na entrada do pavilhão. “Juntos, eles ajudam as pessoas a se sentirem mais seguras em uma realidade em rápida transformação.” Se todas as inteligências são necessárias para o desafio de fazer face ao aquecimento global, o humor e a fé também precisam ser convocados.
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