Aos sete anos, Eliana Sousa Silva deixou Serra Branca, no sertão do Cariri paraibano, quando o pai decidiu mudar com toda a família para Nova Holanda, uma das 15 favelas do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.
O choque entre as diferentes paisagens e misérias moldou a vida de Eliana. Até ser expulsa pela seca extrema, em 1969, a família vivia em um sítio espaçoso em Serra Branca. Em Nova Holanda, os oito foram morar em um barraco de madeira de 25 m².
“Tive uma infância muito restrita, de pouco acesso à rua e de ficar muito em casa, mesmo morando em um lugar tão pequeno. Acredito que meus pais tentavam dessa forma nos proteger daquela realidade. Uma situação que, infelizmente, ainda acontece com muitas crianças da Maré”, diz Eliana.
Apesar do esforço dos pais de manter a dureza da favela longe dos filhos, o contato foi inevitável: deixou leves marcas no corpo e uma vontade enorme de fazer chegar aos moradores da Maré os direitos que não estão garantidos. Foi esse desejo que levou Eliana a fundar a Redes da Maré, trabalho pelo qual foi escolhida para receber o Prêmio Todas na categoria Educação.
Conheça o Prêmio Todas
Distinção, idealizada pela iniciativa Todas, premia mulheres em oito áreas do conhecimento, divididas na categorias Ciência e Tecnologia, Cultura, Economia, Educação, Energia Limpa, Esporte, Política Pública e Saúde. Também foi escolhida a personalidade do ano. Ganhadoras foram eleitas a partir de júri composto por jornalistas, empresárias, ativistas, acadêmicas e membros do terceiro setor.
“Naquele tempo, não havia energia elétrica instalada nem esgotamento sanitário. As valas ficavam abertas na rua, escorrendo esgoto quando chovia. Até hoje tenho marcas no joelho por cair nessas valas quando brincava em frente de casa.”
Em 1979, quando tinha 17 anos, Eliana experimentou o que chama de “primeira tomada de consciência”, quando foi escolhida por sanitaristas da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) para coletar dados para uma pesquisa na Maré.
“Foi o momento em que eu, de fato, conheci Nova Holanda. Comecei a entender as demandas, principalmente às ligadas a saúde e educação de quem vivia ao meu lado.”
Meu trabalho é movido pelo desejo de que a gente viva num país que não naturalize a morte de uma criança, que não naturalize o próprio estado ser o maior violador de direitos. Meu desejo é que a gente passe a enxergar a humanidade de alguém sem olhar a cor, sem olhar o endereço de onde ela vem
Esse primeiro contato foi o que a motivou cinco anos depois a concorrer em uma eleição para presidente da Associação de Moradores de Nova Holanda. Assim, aos 22 anos, ela se tornou a primeira mulher a ocupar o posto de presidente em uma associação de moradores do Rio de Janeiro. Conseguiu uma mobilização inédita na comunidade que resultou na construção de uma creche, instalação de energia, de rede de água e esgoto e coleta de lixo.
Formada em letras pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Eliana fazia mestrado em educação quando se deparou com um dado que retratava o que via diariamente na Maré, mas ainda assim a chocou: só 0,5% das pessoas do bairro conseguiam acessar o nível superior. Foi então que ela e um grupo de moradores decidiram criar um curso pré-vestibular comunitário.
Boa aluna desde os 12 anos, ela dava aulas de reforço para colegas e vizinhos. Com a criação do cursinho, passou a dar aulas de redação.
A primeira turma do cursinho, em 1997, atendeu 90 alunos —33 deles foram aprovados em universidades públicas. “Isso aconteceu em uma época que não havia nem cotas no ensino superior. Naquele momento, a gente entendeu a potência dessa proposta, como aquele trabalho tinha força para gerar mobilidade social.”
Desde que começou a funcionar, o cursinho conseguiu ajudar mais de 1.800 moradores da Maré a serem aprovados para o ensino superior. Entre eles, Marielle Franco, que estudou no local e conquistou uma vaga para cursar ciências sociais com bolsa integral na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).
O sucesso do cursinho fez surgir e ganhar corpo a Redes da Maré, que foi formalizada em 2007 e tem Eliana como diretora fundadora. A entidade tem como objetivo consolidar parcerias para garantir direitos fundamentais aos cerca de 140 mil habitantes do Complexo da Maré.
A Redes da Maré desenvolve hoje 43 projetos que estão divididos em cinco eixos de atuação: educação; arte, cultura, memórias e identidades; direitos urbanos socioambientais; direito à saúde, e direito à segurança pública e acesso à justiça.
“Todos os nossos projetos são pensados por mulheres que moram na Maré. Elas nos ajudam a pensar em soluções que fazem sentido para os problemas e situações que vivemos aqui. Tudo o que a gente faz é fruto de um extenso diagnóstico. Nossa energia se concentra em refletir sobre a desigualdade no nosso contexto”, diz Eliana.
A “segunda tomada de consciência” de Eliana, que acabou moldando sua vida e luta, aconteceu em 2006. Era domingo de eleição, ela chegava para votar na escola onde estudou na infância, quando dois carros da Polícia Militar apareceram e começaram a atirar.
Eliana correu para se proteger, mas viu o momento em que um menino de 3 anos, que estava no colo da avó, foi atingido por um dos tiros. “Esse é um episódio que mudou toda a minha reflexão e prática. Foi quando eu refleti sobre vivermos em uma democracia incompleta, em como é possível ser permitido que uma criança tenha a vida interditada por tamanha violência do estado.”
Eliana fazia doutorado nessa época, mas o episódio a levou a mudar o campo de pesquisa. “Segurança pública não é um tema. É um direito humano que está na Constituição, mas não é garantido para as pessoas da favela”, afirma.
Por tudo o que viu, vivenciou e sentiu morando e trabalhando pela Maré, continua concentrando sua energia para que os moradores de lá possam ter acesso ao que está previsto na Constituição Federal, uma vida digna e de direitos, não apenas deveres.
“Meu trabalho é movido pelo desejo de que a gente viva num país que não naturalize a morte de uma criança, que não naturalize o próprio estado ser o maior violador de direitos. Meu desejo é que a gente passe a enxergar a humanidade de alguém sem olhar a cor, sem olhar o endereço de onde ela vem.”
Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis