Em 2019, quando a Huawei deixou de usar a tecnologia da Cambricon em seus smartphones, a designer de chips de IA chinesa perdeu a maior parte de seus negócios, o que poderia ter sido um golpe devastador.
Seis anos depois, no entanto, uma mudança de estratégia transformou a Cambricon no principal concorrente da Huawei na China. Investidores estão apostando alto na ideia de que a empresa será uma das vencedoras da campanha de Pequim para reduzir a dependência da indústria de IA chinesa de chips fabricados pela Nvidia, dos Estados Unidos.
O preço das ações da Cambricon disparou com especulações de que a empresa poderia se tornar o principal fornecedor de chips para modelos desenvolvidos pela DeepSeek, a campeã chinesa de IA cujo avanço tecnológico surpreendeu o Vale do Silício e os mercados neste ano.
Após suas ações dobrarem de valor desde o início do mês, alcançando 1.495 yuans (US$ 209) e elevando sua capitalização de mercado para 580 bilhões de yuans (US$ 80 bilhões), a fabricante alertou os investidores nesta sexta-feira (29) que o “preço da ação pode estar se distanciando dos fundamentos [do negócio]”.
A Huawei ainda domina a indústria chinesa de chips de IA, mas autoridades têm apoiado a Cambricon na tentativa de criar um ambiente competitivo e aumentar a produção doméstica de semicondutores.
A startup, com menos de uma década de existência, fabrica chips de IA para data centers e módulos de “edge computing”, que colocam recursos de computação mais próximos dos dispositivos, em vez de depender de data centers distantes.
Na terça-feira (26), a Cambricon anunciou um lucro de 1 bilhão de yuans (US$ 140 milhões) nos primeiros seis meses, alinhando-se aos planos de desenvolvimento de IA de Pequim. “A empresa deve assumir a missão e a responsabilidade da nossa era” de avançar a tecnologia de IA, afirmou o fundador Chen Tianshi durante uma teleconferência com investidores neste ano.
A startup surgiu de uma equipe, incluindo Chen e seu irmão, que passou anos desenvolvendo processadores no principal instituto de pesquisa da China, a CAS (Academia Chinesa de Ciências). Com apoio da CAS, o grupo se tornou independente em 2016 e logo lançou seu primeiro chip para tarefas de IA. O instituto permanece como o segundo maior acionista da Cambricon, detendo 15,7% das ações, atrás apenas de Chen.
A Huawei, primeiro grande cliente da empresa, representou 98% das receitas em 2018, licenciando a tecnologia de IA para seus smartphones.
Quando o conglomerado substituiu a Cambricon por tecnologia própria, a designer mudou seu foco para aceleradores de computação em nuvem, capazes de processar tarefas complexas de IA, colocando a empresa em concorrência direta com seu antigo cliente.
A Cambricon sofreu outro revés significativo em 2022, quando Washington a incluiu na “entity list” por supostamente apoiar o desenvolvimento militar chinês. A empresa teve que romper vínculos com a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), sua principal parceira de fabricação, passando a depender de fabricantes chineses.
Entre 2020 e 2024, a Cambricon investiu 5,6 bilhões de yuans (US$ 780 milhões) em pesquisa e desenvolvimento, direcionando recursos para melhorias de software que facilitassem a execução de modelos originalmente treinados em GPUs da Nvidia em seus chips rivais, da série Siyuan.
Diversas fontes, incluindo um engenheiro de IA da ByteDance, afirmam que a compatibilidade de software da Cambricon tornou seus produtos mais fáceis de usar que os da Huawei Ascend.
“A Cambricon teve dificuldades para ganhar tração até o final de 2024, quando colaborou com a ByteDance para tornar seu chip mais compatível com algoritmos treinados no ecossistema da Nvidia”, disse Lin Qingyuan, analista de semicondutores da Bernstein.
As receitas da Cambricon devem subir de 6,5 bilhões de yuans neste ano para 13,8 bilhões em 2026, segundo estimativas do Goldman Sachs, com a participação da empresa no mercado chinês de chips de IA projetada para crescer de 3% para 11% até 2028.
Muitos dos principais compradores chineses de chips de IA, incluindo China Telecom, Alibaba, Tencent e Baidu, também competem com a Huawei em outros segmentos, como equipamentos de rede, computação em nuvem e veículos autônomos, criando forte incentivo para apoiar alternativas ao gigante tecnológico.
Huawei se recusou a comentar, enquanto ByteDance e Cambricon não responderam aos pedidos de declaração.
O crescimento da Cambricon depende de quão rápido seu parceiro de fabricação, a Semiconductor Manufacturing International Corporation (SMIC), consegue expandir a produção de chips de 7 nm, tecnologia avançada utilizada em processadores de IA
No ano passado, Pequim orientou a SMIC a reservar uma parte maior de sua capacidade para a Cambricon, em vez de vender todos os processos avançados à Huawei, segundo duas fontes próximas ao assunto.
O Financial Times noticiou que a SMIC planeja dobrar sua capacidade de 7 nm no próximo ano, o que aumentará ainda mais a produção disponível para a Cambricon e outros projetistas chineses de semicondutores.
A Cambricon teve dificuldades para atender à demanda após vender a maior parte de seus chips no primeiro trimestre para a gigante de internet ByteDance, segundo duas fontes próximas, incluindo um executivo da empresa.
Lin, da Bernstein, afirmou que é apenas “uma questão de tempo” até que as fábricas chinesas lideradas pela SMIC consigam aumentar a capacidade de produção de chips de IA. Ainda assim, analistas alertam que a Cambricon continuará sendo um player menor em relação à Huawei.
A Huawei trabalha para corrigir problemas de software que dificultam o uso de seus chips, ajustando a arquitetura para dar mais flexibilidade aos desenvolvedores e projetando um novo processador para facilitar o treinamento e a execução de grandes modelos de linguagem, segundo várias fontes próximas ao assunto.
A Huawei é a única fabricante que oferece uma alternativa viável ao NV-Link da Nvidia, tecnologia que conecta seus chips e que pode dar vantagem sobre a Cambricon em chips de treinamento de IA, dizem analistas.
A preocupação imediata da Cambricon é garantir mais capacidade da SMIC para fabricar seus chips para atender a demanda crescente.