Considerado uma das principais referências no direito constitucional brasileiro, o jurista e professor José Afonso da Silva completou um século de vida nesta quarta-feira (30).
Acompanhado da filha e de um de seus dois filhos, recebeu a Folha para uma entrevista, a dois dias de seu aniversário, na casa que abriga seu escritório há algumas décadas no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo.
Falou sobre sua trajetória e temas que dominaram discussões recentes do mundo jurídico, como a atuação do STF (Supremo Tribunal Federal), da qual é um defensor, apesar de indicar ressalvas à origem do inquérito que despertou uma série de embates nos últimos anos.
“Acho que o Supremo salvou a democracia do Brasil atual, em umas duas oportunidades”, afirma ele, para quem o tribunal antes era “estático” e “melhorou”.
Autor de mais de 30 obras, José Afonso foi apontado em levantamento de 2013 como o doutrinador mais citado em decisões do STF. Foi homenageado pelo presidente da corte, Luís Roberto Barroso, durante sessão na última semana e também, nesta terça-feira (29), pela ministra Cármen Lúcia, em sessão no TSE (Tribunal Superior Eleitoral)
Lançado em 1976, seu curso de direito constitucional chegou à 45ª edição no ano passado. “Esse é um livro que me agrada”, diz ele, depois de contar que teve bastante trabalho para atualizar a obra com a Constituição de 1988 —texto este que ele ajudou a construir, como assessor jurídico na Assembleia Constituinte. Já sua obra favorita é o livro “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, publicado em 1968.
Natural do interior de Minas Gerais, chegou a São Paulo em 1947, aos 22 anos, sem ter concluído o ensino primário. Na capital paulista, trabalhou como alfaiate enquanto completava os estudos.
Uma semana antes de celebrar seu centenário, recebeu o título de professor emérito da Faculdade de Direito da USP, instituição em que lecionou até 1995, e onde ingressou aos 27 anos como estudante, depois de ter sido aprovado no vestibular. No próximo dia 8, será homenageado em evento na faculdade.
Em 2022, José Afonso se emocionou ao ser homenageado durante ato em defesa da democracia inspirado na célebre “Carta aos Brasileiros”, lida em 1977 e da qual ele também foi signatário. Atuou ainda como procurador do Estado de São Paulo e ocupou cargos públicos, como o de secretário de Segurança Pública, no governo Mário Covas (PSDB).
Estavam presentes durante a entrevista seu filho Virgílio Afonso da Silva, que seguiu os passos do pai e é professor de direito na USP, e sua filha Helena Augusta. Ela conta que o pai segue revisando as próprias obras. “A gente liga na casa dele, às vezes nove e meia, dez horas, e pergunta ‘tá tudo bem, pai’? [E ele diz:] ‘Tô trabalhando’”, conta. “É que o chefe dele é realmente muito bravo, né, pai? Seu chefe é muito exigente”, brinca ela.
“O pior é que ele não paga bem”, arremata o pai, ao que todos riem. Questionado sobre a frequência com que ainda trabalha, ele dá uma breve risada, antes de responder: “Eu trabalho todo dia”. Contou também que pelas manhãs e à noite reserva cerca de 20 minutos para meditar, prática que leva consigo há algumas décadas.
Qual é o sentimento de completar um século de vida?
Eu me sinto, de certo modo, muito forte. Não tenho euforias, mas me sinto muito bem. Porque a saúde, de um modo geral, está bem. Então, chegar a essa idade com uma saúde razoável é muito bom. E isso me proporciona avançar.
O sr. é apontado como um dos doutrinadores mais citados em decisões do STF. A que credita esse feito?
Meu primeiro livro foi muito utilizado no Supremo. Então, eu fiquei conhecido no tribunal pelo meu primeiro livro, que é o do recurso extraordinário [no Direito Processual Brasileiro, de 1963]. E era também conhecido na magistratura em geral. Os juízes citavam muito o livro.
Isso abriu um certo conhecimento no Supremo. Nunca fui lá defender causa. Defendi embaixo, defendi na Justiça, mas no Supremo eu nunca fui lá fazer uma defesa oral.
Depois disso, eles começaram a olhar meus livros, a ler meus livros e aí a entender que havia alguma coisa que podia ser aproveitada neles.
O sr. avalia que trouxe uma nova perspectiva sobre as Constituições com seu trabalho?
[Houve] Uma fala do ministro Luís Roberto Barroso nesse respeito tem uns três dias [em 24 de abril] que ele diz, realmente, que eu trouxe uma contribuição renovadora para o direito constitucional.
Eu acho que eu trouxe, sim. Que isso possibilitou o surgimento de uma corrente modernizadora, renovadora do direito constitucional.
Acho que cabe aos outros agora, digamos assim, meu filho [Virgílio], por exemplo, tocar para frente.
Anteriormente, a gente pensava muito no direito constitucional do ponto de vista da organização do Estado. Uma renovação vem precisamente mudar isto. Para que a Constituição seja um instrumento de garantia dos direitos fundamentais.
O sr. participou da Constituinte. Agora, mais de 35 anos depois, o que o sr. vê como mais importante do novo texto e ponto mais fraco?
Acho que o mais importante é a declaração de direitos fundamentais da Constituição. Especialmente os direitos sociais também. Então esse é o ponto alto da Constituição. Ela tem uma boa declaração de direitos fundamentais. O ponto contrário é que também faltou criar determinados mecanismos para que eles [esses direitos] tivessem eficácia completa.
Como o sr. vê a atuação nos últimos anos do STF e também do ministro Alexandre de Moraes, que tem estado bastante em destaque?
O problema do Alexandre, eu acho que foi criado um mecanismo, não foi nem pelo Alexandre, foi pelo [Dias] Toffoli. Um inquérito que eu acho que não era bom.
Agora, eu não acho que o Supremo esteja errado em tudo. Só quem não conheceu o Supremo antes, que era estático, praticamente não via as coisas do ponto de vista mais humano, só depois disso que passou a ver.
Então o sr vê, de certa forma, a atuação do STF nos últimos anos como positiva, por não ser tão estática, mas também vê pontos negativos?
No meu ponto de vista o Supremo melhorou. O fato de ter um ministro ou outro fazendo coisa que não é tão apreciada não pode atingir o Supremo.
Eu acho que ele melhorou. Quem não conheceu [o STF] antes, que ele era estático… Posso estar até errado, mas acho que o Supremo salvou a democracia do Brasil atual. Acho que ele salvou em umas duas oportunidades.
Em quais?
No 7 de Setembro [de 2021] e no 8 de janeiro [de 2023]. Eu acho que ele salvou a democracia que nós temos.
O sr. considera que no 8 de janeiro houve uma tentativa de golpe?
Eu considero. Eu acho que houve. Eu achei que no 7 de Setembro [de 2021] também era uma tentativa de golpe. Só que não houve correspondência das Forças Armadas ao discurso do [então presidente Jair] Bolsonaro.
A interpretação que o STF faz sobre uma série de temas tem sido muito questionada por uma parte do campo político mais conservador, desde questões de costume a temas como o marco temporal. Há em certa medida uma crise em relação à Constituição e à forma como o Supremo a interpreta e os campos que estão atuantes na política no Brasil?
Eu acho que não. Eu acho que há uma divergência de interpretação, como sempre, entre conservador e progressista. Na Constituinte foi sempre assim também. Os conservadores certamente são menos propensos a aceitar certo tipo de política social. Os ruralistas querem tomar as terras dos índios e outras terras.
Quais são os principais desafios jurídicos que se colocam?
Um grande desafio para o futuro do direito constitucional é a realização dos direitos fundamentais em uma sociedade desigual como a brasileira, sobretudo com o objetivo de diminuir essa desigualdade.
Raio-X
José Afonso da Silva, 100
Professor emérito da USP, é autor de livros como “Curso de Direito Constitucional Positivo” (JusPodivm/Malheiros), que está na 45ª edição, e “Aplicabilidade das Normas Constitucionais” (Malheiros). Na Assembleia Constituinte, foi assessor do senador Mário Covas, então líder do PMDB. Foi secretário da Segurança Pública de São Paulo de 1995 a 1999.