O Roblox, plataforma de games extremamente popular entre crianças e pré-adolescentes, tem sido usado por alguns jogadores para simular atos de conotação sexual em troca de moedas virtuais.
Em espaços não moderados do ambiente digital, crianças são induzidas a realizar ações com os avatares do jogo em troca de recompensas. Os personagens ganharam até apelido: “meninas do job” ou “primas do job”.
No TikTok é possível encontrar vários alertas de responsáveis e também vídeos dos próprios jogadores sobre o que acontece em alguns jogos dentro do Roblox.
A administradora Carolina Junqueira, 34, mãe do Rudá, de 7 anos, ficou preocupada diante dos vídeos que viu. “Encaminhei para o pai dele, que já sabia de algo assim. Mas quando o Rudá joga o Roblox, não é nesse modo online de conversa. Ele só cria ambientes ali”, diz.
Lançado em 2006, o Roblox permite que usuários criem e joguem games desenvolvidos pelos jogadores. Embora tenha uma proposta voltada à criatividade e interação social, o acesso livre a salas criadas por terceiros abre brechas para práticas inadequadas, incluindo a sexualização de menores. É nesse contexto que surgiram ambientes onde avatares infantis simulam relações em troca de benefícios no jogo.
Em alguns cenários, a proposta não é cumprir missões ou disputar pontos, mas sim interpretar personagens e construir narrativas coletivas.
Nesse formato, o jogador pode criar e personalizar seu avatar, definindo características físicas, vestimentas, profissão e comportamentos. Em jogos populares dentro do Roblox, como o Brookhaven, os personagens são incentivados a realizar “trabalhos” semelhantes aos de prostituição para ganhar moedas ou itens virtuais. A prática funciona como uma transa simulada.
Procurada, a plataforma de jogos afirmou que o conteúdo viola as políticas da empresa e foi removido assim que identificado, mas não especificou número de contas nem exatamente qual conteúdo foi tirado do ar.
A companhia divulgou ainda que “a Roblox tem um profundo compromisso com a segurança e o bem-estar da nossa comunidade, com dezenas de milhões de pessoas vivenciando experiências positivas todos os dias. Acreditamos na importância de criar uma experiência segura e adequada à faixa etária de todos os nossos usuários, e nossos Padrões da Comunidade proíbem explicitamente conteúdo romântico ou sexual na plataforma”.
Exposição das crianças compromete percepção de si mesmo
A exposição de crianças a este tipo de conteúdo pode provocar distorções significativas no desenvolvimento emocional, cognitivo e social.
Segundo Telma Vinha, professora da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora adjunta do Instituto de Estudos Avançados (IdEA), crianças submetidas a essas vivências podem apresentar confusão sobre o sentido das relações, repetir falas erotizadas sem entender o que significam ou demonstrar comportamentos incompatíveis com a idade, como curiosidade excessiva sobre sexo e reprodução de gestos em brincadeiras ou com adultos.
Sem maturidade emocional e cognitiva para compreender o que vivenciam, esse público pode associar a sexualidade a sentimentos negativos, como medo, culpa ou vergonha. Vinha aponta ainda que isso compromete a construção futura de vínculos baseados em cuidado e confiança, além de dificultar a percepção de respeito, privacidade e limites. O impacto pode se refletir ainda na forma como a criança percebe o próprio corpo e se relaciona com os outros.
Rodrigo Nejm, doutor em psicologia e especialista em educação digital do Instituto Alana, reforça que a presença de crianças em ambientes digitais, mesmo fora de conteúdos abertamente sexuais, já oferece riscos.
Plataformas de vídeo, redes sociais e jogos expõem esse grupo a pequenas a imagens erotizadas ou a interações para as quais não estão preparadas. Para ele, há uma falsa ideia de que o domínio técnico sobre celulares e jogos representa maturidade, o que não corresponde à realidade.
O especialista alerta para práticas de manipulação emocional que ocorrem dentro de jogos e redes, incluindo aliciamento por adolescentes mais velhos ou adultos. Mesmo quando o conteúdo não é inicialmente explícito, pode haver uma progressão gradual, conduzindo a situações de abuso.
Esse tipo de vivência interfere não apenas na percepção que a criança desenvolve sobre si, mas também nas formas de interação social. De acordo com o especialista, o impacto vai além do momento da exposição, compromete a capacidade da criança de reconhecer limites, lidar com vínculos e se proteger de novas situações abusivas, ampliando os riscos de danos prolongados à saúde mental e emocional.
Jogos como Roblox e Minecraft têm lógica de rede social
Segundo a psicóloga Renata Yamasaki, pós-graduada em Neuropsicologia pela Unifesp, esse processo é incompatível com o estágio de desenvolvimento infantil e se manifesta, especialmente no meio digital, por meio de personagens com visual sexualizado, danças, falas com conotação erótica e interações com desconhecidos.
Do ponto de vista neuropsicológico, essas experiências impactam diretamente o desenvolvimento do cérebro infantil. Yamasaki explica que o contato repetido com esse tipo de estímulo molda conexões nas áreas ligadas ao prazer e à memória emocional, o que pode afetar a percepção corporal e contribuir, ao longo do tempo, para insegurança, erotização precoce e baixa autoestima.
Vinha reforça também que a hipersexualização funciona como uma extensão grave da adultização, sendo alimentada por redes sociais, publicidade e plataformas digitais.
Para ela, jogos online como Roblox, Free Fire, Minecraft e Fortnite têm se tornado ambientes de vulnerabilidade, onde práticas com conotação sexual são tratadas como brincadeiras e conteúdos sensíveis circulam sem supervisão. Esses espaços também têm sido explorados por redes de aliciamento que utilizam desafios e linguagem específica para manipular e envolver crianças.
A professora destaca que o Roblox, embora tenha aparência infantil e proposta lúdica, já foi alvo de denúncias por abrigar conteúdos de natureza sexual e práticas de exploração “simbólica”.
Em 2024, um relatório da Hindenburg Research alertou para falhas graves de segurança na plataforma, apontando desde perfis ofensivos até jogos com temáticas abusivas acessíveis a menores. A empresa foi acusada de priorizar interesses comerciais em detrimento da segurança das crianças.
A exposição excessiva de crianças nas redes sociais também amplia os riscos. Imagens e interações compartilhadas publicamente acabam se transformando em conteúdo voltado à performance e validação, favorecendo o aliciamento e a exploração, principalmente de meninas, que são o principal alvo, segundo os especialistas.
Em muitos casos, a criação de vínculos afetivos artificiais com aliciadores é usada como ferramenta de manipulação e abuso. O cenário, segundo Vinha, exige medidas urgentes de regulação, proteção e acompanhamento.
Condutas em jogos online podem configurar crime; como denunciar
A Constituição Federal e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) estabelecem a obrigação da sociedade, da família e do Estado de proteger crianças e adolescentes contra qualquer forma de violência, exploração ou negligência. No ambiente digital, essas garantias se estendem a práticas que envolvam dados, interações e conteúdos com conotação sexual.
Segundo a criminalista Maria Araújo, especializada em temas digitais e sócia do Ráo & Lago Advogados, o Marco Civil da Internet reforça que o tratamento de dados de menores deve sempre considerar o seu melhor interesse, sendo autorizado apenas com o consentimento dos responsáveis legais.
A especialista explica que trocas de favores sexuais entre avatares de crianças e adolescentes, como os chamados “jobs” no Roblox, podem se enquadrar como crimes previstos no Código Penal e no ECA.
Entre eles, o artigo 218 do Código Penal, que trata da corrupção de menores com o objetivo de satisfazer a intenção sexual de terceiro, e o artigo 241-C do ECA, que criminaliza a simulação da participação de menores em cenas de sexo explícito por meio de representações visuais, incluindo avatares. A configuração do crime depende da análise do caso concreto.
Araújo aponta que outras classificações podem ser aplicadas, como os artigos 241-A e 241-D do ECA, que tratam da divulgação de conteúdos sexuais envolvendo crianças e do aliciamento por meios de comunicação. Ela observa que, mesmo que as interações ocorram entre avatares, a natureza da troca e a intenção do agente podem ser suficientes para configurar o crime. A especialista destaca ainda que o meio digital não exclui a aplicação da lei, desde que os elementos estejam presentes.
Sobre os caminhos legais para a denúncia, a criminalista informa que o registro pode ser feito por boletim de ocorrência presencial ou eletrônico, inclusive sem a necessidade de provas no momento inicial.
Também é possível acionar o Ministério Público ou utilizar canais como o Disque Denúncia (181) e o Web Denúncia, em São Paulo. Caso haja provas digitais, como prints, vídeos ou mensagens, recomenda-se preservar os dispositivos originais para manter o rastreamento da prova e viabilizar a investigação.
Araújo alerta, no entanto, que armazenar imagens ou vídeos com conteúdo sexual envolvendo menores é crime, ainda que com intenção de denunciar. A exceção é quando o material é mantido em sigilo, com finalidade de comunicação às autoridades e apagado após o recebimento.
Ela reforça que a legislação brasileira já prevê penas de reclusão para diferentes formas de exploração virtual infantil, e que a responsabilização só ocorrerá com a formalização da denúncia e a apresentação de indícios à autoridade competente.
Reportagem produzida originalmente e publicada aqui pelo Núcleo Jornalismo (nucleo.jor.br)