Era o ano novo de 2011, três meses antes de a família embarcar para Nova York, para onde se mudaria. Escola e apartamento escolhidos. Planos e malas prestes a serem feitas. Tudo correria bem, se a vida não acontecesse, como diria John Lennon. Neste caso, a morte.
Daniel Piza, jornalista e marido da redatora-chefe da ELLE Renata Piza, faleceu em 30 de dezembro, na casa de veraneio que a família alugava em Gonçalves, sul de Minas Gerais. Uma casa sem telefone, sem sinal de celular, que se transformou no palco funesto de uma morte súbita, aos 41 anos; Renata tinha 33.
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Renata Piza, escritora e redatora-chefe da ELLE
Foto: Divulgação
Da noite para o dia seguinte, ela enterrou o grande amor da sua vida, parceiro pessoal e referência profissional, e grande parte de si mesma. Em um luto patológico, estendido, Renata experienciou dor, raiva, saudade, amor, invisibilidade (com toda a estranheza de ficar viúva jovem e com filhos pequenos), medo, abandono e mais uma leva de sentimentos humanos, demasiadamente humanos, que se misturam e vem em ondas em processos de luto e perdas.
A jornalista registra esse processo em Ninguém morre sozinho (Gema), seu romance de estreia. À ELLE, ela antecipa um trecho do livro, cujo lançamento acontece nesta quinta-feira (31.07), na Flip. Confira:
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“Não sei se você já parou para pensar nisso, ou mesmo se teve de carregar um corpo, caso não trabalhe em uma funerária ou em um cemitério. Mas, um corpo morto, vou te contar, é sempre um corpo pesado, não importa quantos quilos tenha, o gênero, a idade. No começo, eu achava que o peso correspondia ao tamanho do morto menos a alma da pessoa sem vida e, portanto, sem vontade – na exatidão da palavra, sem possibilidade – de se levantar, quiçá de boiar, leve. Um corpo do peso de um cansaço sem volta.
O livro
Foto: Divulgação
Com a minha morte, porém, percebi que o peso de um morto não é a exatidão da balança somada à falta de ação, ou inércia, não é apenas o peso anterior somado ao inchaço provocado pela proliferação de bactérias dando os últimos gritos de vida antes de também partir, ficar sem casa, sem hospedeiro. É a multiplicação das vidas que deixam de existir ali, no momento em que a pupila engole os olhos, e tudo o que resta é escuridão.
No meu caso, então, era o peso do pai somado ao peso dos três filhos, o peso do filho caçula somado ao peso dos três irmãos mais velhos, o peso do marido acrescido ao peso das duas esposas que teve em vida, o peso do amigo mais o de seus muitos amigos e colegas, o peso do escritor com seus dezessete livros de papel, o peso do torcedor do Corinthians, uma nação inteira. Um peso grande, difícil de mover de lugar, de tirar do caminho entre o banheiro e a sala. De tentar esconder. De poder digerir.
“Um corpo em luto é um corpo que respira mal e se equilibra em bicicletas sem rodas, copo de uísque, maço de cigarro, abraço de um estranho, religião nova”
Não sei se você parou para pensar, ou se já passou por isso, mas um corpo em luto é o contrário dessa inércia pesada. É um corpo em luta consigo, que não sabe se quer ficar ou partir, que se mexe, nervoso, o tempo inteiro. Um corpo que pode querer não ser nem estar só para não ter de lidar com tamanha ausência deixada pela morte. Um corpo-pena que murcha, diminui, fica mirrado. Um corpo com pena de si mesmo, que intencionalmente se destrói por dentro, e, às vezes, também por fora, arrancando pequenos pedaços de pele, unha, pelo, cabelo. Um corpo que dói o tempo inteiro. Em luta contra a vida. Em combate com a morte.
Um corpo em luto é um corpo que respira mal e se equilibra em bicicletas sem rodas, copo de uísque, maço de cigarro, abraço de um estranho, religião nova. Um corpo que também carrega um corpo dentro dele, um corpo morto, pesado. O resultado é que nem sempre consegue sair da cama. Fica cheio de lágrimas, inchado de queixas. Do que era. Do que podia ter sido.
“Um corpo em luto quer acordar em outro corpo, ou dormir para sempre, e não ter de pensar em quem morreu além dele”
Não sei se você já parou para pensar, mas um corpo morto é sempre enterrado. Ou cremado. A não ser quando é congelado por alguém que acha que pode ressuscitar, feito Jesus Cristo, ou que vai para a pesquisa científica e fica para sempre imóvel, bonito no formol. Um corpo em luto, por sua vez, é um corpo em permanente decomposição. Pouco a pouco perde o brilho, o tônus, a fome, a capacidade de ouvir, a vontade de falar, de querer se reproduzir, de fazer sexo. De vida.
Um corpo morto repousa, suporta a vigília. Se a gente olhar demais, acha até que ele encontrou alguma paz. Mas um corpo em luto raramente encontra descanso, sono. Muito menos sonho. Um corpo em luto vive em estado presente-permanente de pesadelo, principalmente quando abre os olhos.
Um corpo em luto quer acordar em outro corpo, ou dormir para sempre, e não ter de pensar em quem morreu além dele. Nunca sabe o que fazer. E acha que, quando faz, fez de menos.
Um corpo em luto vive em dívida com todos. Principalmente com ele mesmo.”
Lançamento Ninguém morre sozinho na Flip: quinta-feira (31.07), das 14h às 15h30, leitura de trechos com Larissa Maciel; das 15h às 16h, bate papo entre da autora e Carol Tilkian, com mediação de Cris Fibe. Travessa Gravatá 56D.
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