Andrea Beltrão está de volta aos palcos em São Paulo com Lady Tempestade. A peça dirigida por Yara de Novaes, com dramaturgia de Sílvia Gomez, recupera a história da advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003), que defendeu mais de 500 presos políticos durante a ditadura militar, ajudando mães e pais que procuravam seus filhos.
Como Eunice Paiva, retratada em Ainda estou aqui (2024), Mércia é uma personagem pouco conhecida da luta por justiça e contra a violência no Brasil. Foi uma coincidência que Andrea e Fernanda Torres, intérprete de Eunice e sua parceira na série Tapas & beijos (2011-2015), tenham recuperado as histórias dessas mulheres corajosas praticamente ao mesmo tempo.
Foto: Gil Tuchtenhagen
Isso porque, depois de viver Antígona (2017-2023), que lutava contra um rei tirano para poder enterrar seu irmão, a atriz não esperava contar outra história de mulheres procurando o direito de encontrarem seus parentes e sepultá-los, caso estivessem mortos.
Lady Tempestade nasceu do desejo de Andrea de trabalhar com Yara, que ganhou o prêmio de melhor direção da Associação de Produtores de Teatro pela peça e por Prima facie, espetáculo com Deborah Falabella, que atualmente viaja pelo Brasil. Foi ela que topou com a história de Mércia ao participar, como atriz, do filme Zé (2023), de Rafael Conde, sobre o militante José Carlos Novaes da Mata Machado – a advogada conseguiu localizar seu corpo, promover a exumação e transferência para Belo Horizonte, onde pôde ser sepultado.
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Lady Tempestade é baseada nos diários de Mércia, dos anos 1970. No monólogo, Andrea interpreta uma mulher que recebe os escritos e vive também a advogada. Sua única companhia no palco é seu filho Francisco, que faz a trilha e participa pontualmente. Mas a dramaturgia faz questão de mostrar como a violência daqueles tempos sobrevivem nos dias de hoje, com o depoimento de uma mãe que teve o filho assassinado pela polícia em 2022. “Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão” é uma frase repetida pela atriz durante a peça.
Andrea conversou com a ELLE sobre Lady Tempestade, coragem, coincidências e como é trabalhar com o filho:
Francisco, filho de Andrea, e a atriz, em cena
Foto: Gil Tuchtenhagen
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Lady Tempestade surgiu da sua vontade inicial de trabalhar com a Yara de Novaes. Mas o que te empolgou no projeto?
Foi a história da Mércia, definitivamente. É uma mulher simples, uma professora primária (formada em direito), que se depara com uma realidade brutal e decide fazer alguma coisa. A história dela é bem apaixonante, parece saída dos livros. A gente não pensou: “Vamos fazer uma peça sobre esse período”. Não. A nossa primeira paixão foi a Mércia. A gente queria, de uma maneira simples e delicada, contar a história. E foi se desdobrando e virando esse espetáculo que fala também desse período terrível pelo qual a gente passou.
Quando a gente vê alguma pessoa tendo atitudes corajosas, tende a pensar o que faria no lugar dela. Você se questionou se teria a coragem que ela teve?
Acho que não. É um traço dela muito impressionante, meio inexplicável. Ela era uma jovem de 30 e poucos anos, recém-casada, com filho pequeno. Talvez nem ela soubesse se explicar, porque a gente faz certas coisas na vida e não sabe por quê. É um gesto de coragem muito grande, que colocou em perigo a vida dela e da família. A Clarice Lispector disse uma vez que gostaria de ser uma pessoa revolucionária, que muda o mundo, mas que percebeu que jamais seria isso. Então ela escreve. Talvez a gente tente, eu com o meu ofício, você com o seu, colocar alguma coisa na qual a gente acredita e acha que pode contribuir. Mas, desse tamanho, dessa intensidade, dessa envergadura que a Mércia fez, não acho que seria capaz. Acho que sou covarde para isso. Talvez por isso eu tenha me apaixonado tanto por ela.
“Quando fazia Antígona, um texto lindo, de 2.500 anos atrás, sempre pensava: ‘Quando essa peça vai deixar de ser atual?’. Nunca. Acho que a história da Mércia também”
Você já tinha ouvido falar da Mércia antes do espetáculo?
Não, é um absurdo. São as pequenas invisibilidades que nos fazem tão mal. Faz falta saber de pessoas assim. É encorajador, dá um entusiasmo depois que você fica sabendo da história dessa mulher.
Esse período nunca foi muito discutido pela sociedade brasileira, a não ser em alguns círculos. Você acha que pelo fato de ser uma mulher, nordestina, isso amplia a invisibilização da história da Mércia, que ajudou centenas de pessoas?
O Brasil é um país imenso. Uma vez, fui fazer uma peça no Sul, um lugar que adoro. Era As centenárias, em que Marieta (Severo) e eu fazíamos duas mulheres centenárias, nordestinas, carpideiras. Causou estranheza a gente ler no jornal: “O espetáculo é interessante. Mas não faz parte da nossa realidade aqui no Sul”. Foi uma frase muito chocante e reveladora. Como não faz parte? Temos vários sotaques, várias culturas misturadas nesse país continental gigantesco, mas somos todos brasileiros. Às vezes parece tão longe uma coisa que é tão nossa. São distâncias que a gente precisa vencer e conhecer as histórias do Sul, do Norte, do Nordeste. Precisamos encurtar essa distância, contando histórias por meio do jornalismo, do teatro, do cinema, da televisão, dos livros, das músicas.
Foi uma grande coincidência você fazer essa peça praticamente ao mesmo tempo em que a Fernanda Torres, sua companheira de Tapas & beijos, contou a história da luta de outra mulher, Eunice Paiva, durante a ditadura, no filme Ainda estou aqui, que deixou muito evidente que muita gente não sabe o que foi esse período.
Não sabe. Foi uma coincidência interessantíssima a gente ter feito cinco anos de Tapas & beijos, uma comédia maravilhosa, e depois, por caminhos tão distantes, se encontrar de novo no mesmo ponto, ela fazendo a Eunice, eu fazendo a Mércia. Se a gente tivesse combinado, não teria sido tão perfeito. A gente monta Shakespeare, conta histórias da Inglaterra, da Escócia. Essa é uma história nossa, muito brasileira. E essa sombra que continua meio por aqui e pelo mundo faz com que a história fique mais forte e perturbadora. Quando fazia Antígona, um texto lindo, de 2.500 anos atrás, sempre pensava: “Quando essa peça vai deixar de ser atual?”. Nunca. Acho que a história da Mércia também.
Foto: Nana Moraes
A peça se passa nos anos 1970, mas tem uma relação muito forte com o presente.
Não dá para esquecer o passado. Não é uma boa opção a gente apagá-lo, esquecê-lo. Ao mesmo tempo, essas violências continuam acontecendo hoje. São violências revestidas de outros procedimentos, de outras ideologias. E o futuro também anda meio sombrio. Essa ideia da Silvia Gomez de fazer um texto que fala sobre ontem, hoje e amanhã tira a história da Mércia de um lugar engessado. O que importa nesse texto e na história dela é que continuamos.
Você teme o futuro?
Temo. Vivo um dia de cada vez. Não fico desesperada pensando no futuro. Mas leio dois jornais por dia, vejo os noticiários. Para a gente que tem muita informação, não dá para ficar muito sossegado. Não está um mar de rosas. A situação no Brasil e pelo mundo está muito delicada. As mudanças climáticas, a devastação, as violências, as invasões, as guerras, a desigualdade horrível no mundo todo. Mas tenho sempre esperança. Sou uma pessimista esperançosa. Senão, não dá, fica só na tristeza. Tem coisas lindas na vida. Mesmo que não aconteçam com a gente, dá para ver, escutar, apreciar, admirar. A vida também é bonita.
“O Francisco é para mim um porto seguro no espetáculo, completamente sóbrio, sereno, discreto, puro, porque é a estreia dele”
Por falar em coisa bonita, como é trabalhar com o seu filho na peça.
Foi uma ideia da Yara. A presença dele no palco traz muitos significados para a peça, cuja linha matriz fundamental são mães e pais que procuram desesperadamente por seus filhos. Ontem, hoje, talvez amanhã. A Mércia procura filhas e filhos de mães em desespero, mas o meu está aqui atrás. Esse privilégio, que não deveria ser um, mas o caminho normal, é um contraponto. O Francisco é para mim um porto seguro no espetáculo, completamente sóbrio, sereno, discreto, puro, porque é a estreia dele. É bonito ver uma pessoa que não tem os truques, as imperfeições, as manias do ofício, dos quais tento me libertar para carregar um certo frescor. Ele me influencia muito. Sempre que a gente sai de cena, ele fala: “Hoje foi bom, hein, mãe?”. Ele é muito crítico e não é nada deslumbrado, nem excessivamente entusiasmado. É uma parceria maravilhosa. Ele faz 30 anos neste mês, nem acredito, passa muito rápido. Aproveito cada segundo porque não sei quando isso vai se repetir ou se se repetirá talvez um dia.
A peça também está virando um filme, que você fez com seu marido, Maurício Farias. Como será esse longa?
Quando estava fazendo Antígona, a gente resolveu ir para o Teatro Poeira (criado por Andrea e Marieta Severo) e ficou lá durante uns 10 dias fazendo o filme (do espetáculo). A gente adorou essa experiência. A partir daí, o Maurício resolveu filmar todas as peças que eu fizesse. É uma filmagem diferente. A gente sempre faz com o celular. Lady Tempestade já está no primeiro corte. A gente ainda não teve tempo de sentar e ver se precisa refazer algo. É um cinema meio guerrilha, independente.
Lady Tempestade: no Teatro FAAP. Sextas e sábados, às 20h; domingos às 17h. Até 5 de outubro. Ingressos: de R$ 80 a R$ 200. Mais informações aqui.
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