Já era fim da manhã de 6 de junho de 1945 quando José Roberto de Macedo Soares, ministro interino das Relações Exteriores, convocou uma entrevista coletiva urgente no Palácio do Itamaraty, no centro do Rio de Janeiro. O Brasil acabara de declarar guerra ao Império Japonês.
Já em guerra contra a Itália e a Alemanha, os outros países do Eixo, desde 1942, o Brasil não havia se posicionado formalmente contra o Japão. “O Sr. Oswaldo Aranha [ministro das Relações Exteriores à época] a isto se opôs, e com razão, sob o fundamento de que a tradição do nosso país era de só fazer a guerra defensiva”, afirmou.
“Os acontecimentos se desenvolveram, porém, a tal ponto, que hoje em dia, o Brasil, defendendo a América, defende-se a si próprio. Não estamos, pois, mudando de atitude. A posição que agora assumimos, chegando do estado de relações diplomáticas interrompidas ao estado de guerra, é o desdobramento de uma mesma atitude”, acrescentou.
A declaração de guerra contra os países europeus foi motivada pelos sucessivos afundamentos de barcos civis da marinha mercante brasileira por submarinos alemães e italianos. Só em 15 de agosto de 1942, o submarino alemão U-507 afundou três navios mercantes brasileiros em 24 horas: Baependi, Araraquara e Aníbal Benévol. Foram 551 mortos. Como o Japão não estava ligado aos ataques, não foi incluído na declaração de guerra.
Apesar disso, as hostilidades e perseguições à comunidade nipônica do Brasil começaram na mesma época, quando as relações diplomáticas entre os dois países foram rompidas. Escolas de língua japonesa foram fechadas, livros e jornais japoneses, proibidos de circular, e pessoas foram expulsas de suas casas sob a suspeita de fornecerem informações para o afundamento dos navios.
Em Santos, cidade litorânea a 85 km de São Paulo, as hostilidades do governo brasileiro geraram uma crise humanitária. Porto de chegada dos imigrantes, a cidade deu origem a uma grande colônia japonesa, onde abriram empresas de pesca, importadoras e exportadoras, empórios, quitandas e se desenvolveram ao longo dos anos.
No dia 8 de julho de 1943, o governo brasileiro decretou a expulsão de todos os japoneses e alemães da cidade dentro de 24 horas, sob a alegação de que espiões infiltrados repassavam informações sobre a posição de navios brasileiros na costa.
A maioria dos alemães saiu por conta própria, pagando suas passagens. Já os japoneses foram expulsos pela polícia e pelo Exército, sob forte aparato militar. A medida não atingiu os italianos, segundo notícia do jornal “A Tribuna”, de Santos, porque eles eram “reconhecidamente ordeiros e identificados com os costumes”.
Hoje com 80 anos, o engenheiro Hidemitsu Miyamura ainda não havia nascido quando seus pais e sua irmã mais velha foram expulsos de Santos, mas conhece bem a história tantas vezes contada por eles. “Meu pai, minha irmã, com apenas um ano e oito meses, e minha mãe tiveram que deixar tudo o que conquistaram para trás e embarcar num trem rumo a São Paulo, sob a mira de fuzis”, contou à Folha.
Na antiga estação do Valongo, os japoneses foram embarcados em vagões trancados, como prisioneiros. Só puderam desembarcar na plataforma junto à Hospedaria dos Imigrantes, no bairro do Brás. Ali, quem tinha parentes ou um local para ficar, podia ir embora.
Os outros, como a família de Miyamura, continuaram no local. “Eles ficaram por três dias na hospedaria, passando frio e fome”, contou. “Depois, novamente sob armas, foram levados de caminhão para a Estação da Luz e de lá partiram para Paraguaçu Paulista, no interior, onde meu avô materno morava.”
O que viria depois foi ainda pior. Deflagrada oficialmente a guerra contra o Japão, as perseguições ganharam um novo ingrediente: as prisões arbitrárias. A Segunda Guerra Mundial já estava perto do fim e se deslocara para o Oceano Pacífico em busca da rendição das tropas japonesas —o que aconteceu em setembro daquele ano. Nesse contexto, a comunidade nipônica brasileira ficou sozinha sob os holofotes.
O empresário Akira Yamauchi, 75, relatou que seu pai, dono de uma oficina mecânica na cidade de Tupã, a cerca de 450 km da capital paulista, foi enviado ao Presídio da Ilha Anchieta, em Ubatuba, apenas por se recusar a pisar na bandeira do Japão. Um dos presídios mais temidos pelos presos, o local era isolado em uma ilha longe do continente (a cerca de 225 km da capital), facilitando a tortura e falta de fiscalização.
O caso aconteceu no momento em que a comunidade japonesa do Brasil se dividia entre “vitoristas” e “derrotistas”. Os primeiros eram tidos como devotos do Imperador Hirohito e se negavam a acreditar na rendição. Os outros eram descendentes de japoneses já nascidos no Brasil que admitiam a derrota.
Num clima de belicosidade entre os dois grupos, uma entidade radical secreta foi criada, chamada Shindo Remmei. Ela teria sido responsável pela morte de pelo menos 24 “derrotistas”. Diante desse cenário, o governo brasileiro intensificou a caça aos japoneses e prendeu 172 imigrantes na Ilha Anchieta, a maioria inocente.
“A forma que a policia achou para saber se a pessoa era ou não da Shindo Remmei era mandando pisar na bandeira do Japão”, disse Yamauchi. “Se não pisava, diziam que era porque adorava o Imperador, não acreditava na derrota e participava da seita secreta. Meu pai passou 30 meses preso, mas teve a sorte de não ser tão maltratado porque usou seu ofício de mecânico para consertar os barcos e o gerador de energia do presídio. Ganhou respeito das autoridades.”
Os casos de tortura e maus tratos no presídio caíram no esquecimento e permaneceram desconhecidos pela maioria dos brasileiros por décadas. A explicação, segundo o doutorando em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo) Bruno Hayashi, está no temperamento reservado dos japoneses.
“Embora haja estudos mais aprofundados nos anos recentes, muitos desses casos de violações de direitos não parecem ser ainda tão conhecidos mesmo entre japoneses e seus descendentes no Brasil”, disse. De acordo com ele, isso pode estar relacionado à escolha de muitas vítimas desse período de não abordarem o tema, preferindo deixar no passado.
Em julho de 2024, essa realidade começou a mudar. O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania reconheceu a perseguição política sofrida pelos imigrantes japoneses e fez um pedido formal de desculpas em nome do Estado brasileiro.
“Meus pais não estão mais aqui, mas tenho um grande desejo de que as pessoas que sofreram e se sacrificaram naquela época possam ouvir, de onde estiverem, esse pedido de desculpas”, disse Miyamura.