“É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma boa fortuna deve estar necessitado de uma esposa.” A abertura de “Orgulho e Preconceito” costuma ser citada como piada elegante sobre homens ricos, mas o alvo de Jane Austen está em outro lugar. Ela não descreve desejos masculinos; explicita o que famílias inteiras precisam tomar como verdade para continuar funcionando em um mundo em que o casamento é, antes de tudo, arranjo econômico. Quem “reconhece” essa verdade são mães com filhas solteiras e parentes preocupados com herança e dote, para quem um vizinho com quatro ou cinco mil por ano não é uma presença neutra, é uma chance rara em um mercado estreito demais.
“Cents and Sensibility”, de Gary Saul Morson e Morton Schapiro, deu nome ao que eu já intuía após me formar em economia: romances não são enfeite para teorias, são outra forma de evidência sobre comportamento, cultura e dilemas morais. Eles chamam de humanomics essa conversa entre economia e humanidades, em que modelos continuam importantes. Contudo, podem se beneficiar quando dialogam com narrativas capazes de registrar vergonha, orgulho, lealdade, medo, tudo o que some quando o mundo precisa caber em poucas variáveis.
Austen escreve em uma sociedade em que poucas mulheres podem trabalhar de forma socialmente aceitável, quase nenhuma controla o patrimônio e o casamento é o principal canal de acesso à renda, moradia e algum grau de autonomia. O conflito que atravessa seus romances não é um dilema abstrato entre amor e dinheiro, mas a escolha concreta entre uma união que oferece alguma estabilidade às custas de liberdade e respeito próprio e outra que atende ao afeto imediato, mas fragiliza a família inteira.
Além disso, famílias que tratam renda e poupança com leviandade mantêm padrão de consumo acima do que podem ou se recusam a planejar sucessão, e acabam expostas à pobreza, dependência e humilhação; casais que fogem “por amor”, sem renda estável nem profissão definida, descobrem que o sentimento não resolve aluguel, dívidas ou prestígio social. Em um regime de herança concentrada em poucos homens, com oportunidades estreitas de trabalho respeitável para mulheres, uma decisão tomada na juventude pode fechar quase todas as alternativas de correção mais tarde. Ao mesmo tempo, Austen não absolve o materialismo: é dura com personagens que tratam casamento apenas como transação patrimonial e esquecem que terão de viver com a pessoa do outro lado do contrato.
Michael Chwe, em “Jane Austen, Game Theorist”, lê os romances como estudos de raciocínio estratégico muito antes da teoria dos jogos: personagens avaliam incentivos, antecipam reações, escondem informação e decidem sob assimetrias de poder que limitam seu campo de ação. Darwyyn Deyo argumenta que Austen trabalha nitidamente com o “economic way of thinking”, articulando pobreza, investimento em educação, reputação e mercado de casamentos de um modo que conversa com o debate econômico posterior. Nessa chave, a insistência da autora em rendas anuais, dotes e heranças deixa de ser detalhe pedante para virar o desenho implícito do espaço de escolhas disponível para cada família.
A camada moral se encaixa na mesma preocupação. Em “A Teoria dos Sentimentos Morais”, Adam Smith descreve nossa tendência a admirar automaticamente os ricos e negligenciar os pobres como algo funcional para preservar hierarquias, mas corrosivo para o julgamento ético. Austen transforma essa tensão em cenas e diálogos: figuras fascinadas por dinheiro e título passam a ver pessoas como degraus; outras insistem em critérios de valor que não cabem inteiros na contabilidade patrimonial e pagam caro por isso, seja em isolamento social, seja em insegurança material. O conflito não é entre um mundo material e um mundo “puro” de sentimentos, e sim entre maneiras distintas de harmonizar afeto, respeito e sobrevivência dentro de um mesmo conjunto estreito de oportunidades.
2025 marca os 250 anos de nascimento de Jane Austen, com reedições, festivais e relançamentos, incluindo o retorno de “Orgulho e Preconceito” de 2005 às telas e anúncios de novas adaptações. Quem chegar a ela pelo cinema talvez esteja em busca de diálogos afiados e de fim feliz, e não há nada de errado nisso. Mas para quem se interessa por renda, desigualdade e escolhas sob restrição, vale aproveitar a onda para ler ou reler os romances com outra perspectiva. Por trás dos bailes e das paisagens inglesas, Austen segue perguntando o que fazemos quando dinheiro, afeto e futuro aparecem comprimidos na mesma decisão, e a resposta continua desconfortavelmente atual.
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